O uso de novas marcas de gênero na língua portuguesa como decorrência de um ativismo social aplicado à linguagem nos convida a uma análise. Para iniciá-la, entendemos, de forma simplificada, que o ativismo social consiste em colocar em prática o que se defende com sustentação de teorias e valores. Fazer, agir, concretizar, e não apenas falar sobre.
No caso da língua portuguesa, há registro de diversos movimentos relacionados à busca de usos alternativos aos aceitos oficialmente. Até recentemente, esses movimentos tinham como foco principal a adoção de usos que conferissem à língua do Brasil uma identidade própria.
O romantismo e o modernismo são dois exemplos de momentos de defesa da cultura nacional e da busca de traços genuinamente brasileiros. Desses e de outros momentos, surgiram, por exemplo, propostas de substituição de estrangeirismos por palavras que seriam mais ‘brasileiras’.
O ativismo atual, com conexões históricas mais recentes com os movimentos em defesa dos direitos das minorias, constituídos mais fortemente na década de 1960, preocupa-se menos com estrangeirismos e mais com aspectos ligados a esses movimentos, dos quais se destacam as questões de gênero.
Aqui examinaremos os usos de ‘@’, ‘x’, ‘e’ como desinências para identificar conjuntos de pessoas de diferentes gêneros, em substituição ao plural masculino, previsto nas normas gramaticais – em tempo: desinências são partículas (letras) posicionadas no fim de substantivos e verbos para indicar pessoa, gênero, número e tempo.
Segundo essas normas, basta que haja um elemento masculino para que o plural seja masculino. Ao nos referirmos a um coletivo em que haja pelo menos uma pessoa do gênero masculino, escrevemos: ‘Nossas saudações a todos’. Nos usos do ativismo, usa-se: ‘Nossas saudações a tod@s’, ‘todxs’, ‘todes’ e, mais recentemente, ‘tods’.
Do ponto de vista da funcionalidade da língua, os dois primeiros não se mostram viáveis no caso de sua produção oral, assim como o último, o que nos leva a supor que seu uso, enquanto perdurar, continuará restrito ao contexto da escrita.
O terceiro (‘e’) não apresenta essa limitação. Para uso amplo, tanto na fala quanto na escrita, parece-nos, então, que só ele tenha alguma perspectiva de incorporação à língua portuguesa. Mas resta considerar outros aspectos de sua introdução regular nos usos do português.
Duas Questões
Em primeiro lugar, devemos levar em conta que a variação de gênero em nossa língua não se faz exclusivamente por meio de desinências. Segundo a tradição das gramáticas escolares, há também:
– os epicenos: substantivos que dependem das palavras macho e fêmea, como girafa fêmea e girafa macho;
– os comuns de dois: em que o gênero é indicado pelo artigo e pronome – por exemplo, a agente/o agente, essa dentista/esse dentista;
– e os sobrecomuns: com forma única, quase um neutro, embora, arbitrária e convencionalmente, se valham de um determinante feminino ou masculino, como a testemunha, o cônjuge, a vítima, o indivíduo.
Cabe perguntar: a quais palavras se aplicariam as novas desinências? Dependendo da abrangência que se queira dar a elas, a transformação pode se estender a um universo muito mais amplo do que o atual, caso em que as alternativas propostas seriam insuficientes.
A segunda questão que se coloca tem a ver com o avanço do uso das novas desinências para sintagmas (de forma simples, elementos de uma oração) compostos por maior quantidade de termos, o que levaria necessariamente à busca de soluções para emprego dos artigos e pronomes relacionados ao novo gênero.
Enquanto o uso está restrito a saudações, a desinência funciona. Se quisermos ampliar seu uso, será preciso pensar como ficaria um período simples com variações de gênero em diversas palavras. Por exemplo, ‘Todos os estudantes calouros entregaram seus trabalhos dentro do prazo que as professoras propuseram’.
Como resolver o caso de ‘todos’, ‘os’, ‘calouros’ e ‘seus’? ‘Todes’, ‘es’, ‘caloures’ e ‘ses’? As marcas de neutralização (no caso, a desinência ‘e’) se aplicariam também aos substantivos ‘trabalhos’ e ‘professoras’ – este último remetendo a um conjunto de docentes do gênero feminino? Ou o neutro ficaria reservado apenas para conjuntos de pessoas com mais de um gênero representado?
No que se refere ao gênero como categoria gramatical, devemos considerar sua alegada desvinculação do recorte social. Segundo o linguista Marcos Bagno, em seu livro Não é errado falar assim! (2012): “Essa classificação é completamente arbitrária, ou seja, não obedece a nenhuma característica física, natural, das coisas que as palavras nomeiam, não obedece a nenhum critério racional: tudo se deve à tradição de uso e às convenções sociais estabelecidas entre os falantes da língua”.
Mas, para as bases de sustentação do ativismo, a língua é uma instância sociocultural que afeta a constituição de identidades e poderes, como encontramos no artigo ‘Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas’ (2008), da pedagoga Guacira Lopes Louro: “A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais”.
Quanto aos usos de desinências de gênero alternativas, adotamos como pressuposto que o ativismo social busca, nesse caso, uma marca que supere o binarismo feminino e masculino, por meio de desinências que sirvam para todos os gêneros – aqui considerados em sua complexidade de categoria social.
Nesse sentido, entendemos também que as saídas que têm sido propostas buscam o apagamento ou a neutralização da marca morfossintática conhecida gramaticalmente como gênero.
De fato, há línguas contemporâneas, como o alemão e o inglês, que se valem do neutro. No caso do português, o mais longe que conseguimos chegar na história é no latim, que se vulgarizou e deu origem a um conjunto de línguas hoje classificadas como neolatinas – entre as quais figura a língua portuguesa.
Nessa trajetória, o neutro do latim sofreu um processo de desativação, não logrando chegar nem mesmo ao português arcaico, segundo o artigo ‘O que aconteceu com o gênero neutro latino?’ (2012), das linguistas Valéria Monaretto e Caroline Pires.
Paralelamente, devemos considerar que a mudança de foco e abordagem dos estudos sobre a língua, a partir da linguística, trouxe para esse cenário a variação como tema indispensável à compreensão sobre os usos da língua.
Assim, hoje, podemos afirmar que “não existe língua para além ou acima do conjunto das suas variedades constitutivas, nem existe a língua de um lado e as variedades de outro, como muitas vezes se acredita no senso comum: empiricamente a língua é o próprio conjunto das variedades”, nas palavras do linguista Carlos Alberto Faraco, em sua obra Norma culta brasileira (2008).
Essas variantes (‘dialetos’) acabam se fixando como modos específicos de se usar a língua, com circulação em suas respectivas comunidades discursivas. São normas de uso. Segundo o gramático José Carlos de Azeredo – em Gramática Houaiss da língua portuguesa (2008) –, uma norma consiste em um “conjunto de realizações fonéticas, morfológicas, lexicais e sintáticas produzido e adotado mediante um acordo tácito pelos membros da comunidade”.
Mas a língua é também um território de disputas em que grupos de usuários tentam impor seus hábitos linguísticos. Segundo Bagno (2012), “Em todas as sociedades, existe sempre um grupo de pessoas, uma classe social ou uma comunidade local específica, que acredita que o seu modo particular de falar a língua é o mais correto, o mais bonito, o mais elegante e, por isso, deve ser o modelo que as outras classes e comunidades precisam imitar”.
Esse modo supostamente melhor corresponderia ao que se convencionou chamar norma culta, que, ainda segundo Faraco, “designa o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita”.
A ideia de que a norma culta é uma forma melhor – e mesmo a única forma inteiramente correta – de se empregar a língua portuguesa está fortemente representada na atitude do povo brasileiro em relação à língua, em especial por ser a variante que predomina como referência na educação escolar, nos textos oficiais, no contexto jurídico, na grande mídia e em outras instâncias de maior prestígio social.
A partir dos novos enfoques não só da linguística, mas também da psicolinguística, da sociolinguística, da semiologia e da análise do discurso, a evolução dos estudos sobre a língua fez avançar muito a compreensão sobre os usos das línguas, tornando cientificamente insustentável a concepção de um uso único e superior.
Acontece que a busca de novos paradigmas de compreensão, bem como o desenvolvimento de novas práticas de ensino da língua portuguesa e a efetiva aceitação dos vários usos, ainda enfrentam muitos obstáculos para sua efetivação, por causa de uma visão estreita e, muitas vezes, preconceituosa da língua.
Apesar dessas resistências, faz parte da evolução histórica das línguas seu caráter dinâmico, o que pode ser atestado pelo constante movimento de atualização e mesmo de mudança ao qual todas estão sujeitas.
Para a questão da introdução de usos linguísticos alternativos aos previstos e consagrados, como parte de um ativismo social, propomos que se considerem duas hipóteses para que não haja neutro em nossa língua:
– não houve demanda específica de uso da língua com força suficiente para a adoção do neutro;
– não houve proposição de usos do neutro que tornassem a língua portuguesa mais produtiva.
Qual é o cenário atual com relação a essas hipóteses? Antes de responder, apresentamos três casos para reflexão sobre o tema:
– embora os falantes de português no Brasil aceitem sem problemas que ‘axioma’, ‘carcinoma’, ‘dilema’, ‘idioma’, ‘problema’, ‘sintoma’ e outras palavras terminadas em ‘a’ sejam gramaticalmente do gênero masculino, observamos que cada vez menos os usuários aceitam o gênero masculino para ‘grama’, mesmo que quilograma, múltiplo dessa unidade, seja masculino;
– segundo Bagno (2012), “algumas palavras, ao longo dos séculos, mudaram de gênero em português, sem que isso tivesse representado nenhum problema para ninguém” – exemplos citados pelo linguista incluem ‘cometa’, ‘fantasma’ e ‘mapa’, que eram do gênero feminino, e ‘árvore’, ‘linguagem’ e ‘origem’, que eram masculinos;
– Dilma Rousseff sancionou a lei 12.605, de 3 de abril de 2012, que “determina a flexão obrigatória de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas”. Em 11 de abril de 2019, o atual presidente da República fez publicar o decreto 9.758, que substitui todas as formas até então usadas para tratamento entre agentes públicos por uma só: ‘Senhor’, com flexão para o feminino e plural.
Em relação a este último item, nenhuma das duas medidas parece ter tido maior repercussão entre os usuários da língua, mesmo tendo emanado do mais alto posto do poder executivo.
Por que aceitamos algumas formas novas e rejeitamos outras? O que explica as mudanças e as permanências nos usos de uma língua? Sua funcionalidade? Seu valor simbólico? As tradições culturais de um povo? O resultado das lutas entre conservadorismo e renovação? Aspectos menos claros de vertentes mais contemporâneas, como as neurociências, vão contribuir para entendermos?
Não há como indicar um caminho de mudança na língua que evite a complexidade das disputas entre os diversos segmentos sociais. Assim como a escola e outras instâncias com poder sobre a ‘língua oficial’ não conseguem impor por completo o uso da norma que elegeram como a melhor, o inverso também dificilmente ocorrerá: o ativismo não será suficiente para que novos usos sejam assumidos para além das comunidades discursivas em que foram criados.
O mais provável é que permaneçam acolhidos e fomentados nos contextos em que já circulam, como marca identitária dos grupos que os adotam. Sua expansão para um uso amplo dependerá não só (e sempre) das movimentações e disputas que conseguimos perceber nos contextos de uso da língua, mas também de aspectos que não estão necessariamente compreendidos pelas ciências.
A língua é propriedade exclusiva de seus usuários, que negociam seus usos, o que faz com que ela mude constantemente, mas nunca pela ação direta de uma vontade ou convicção de um só grupo.
Nesse sentido, cabe aos defensores da mudança sua proposição e prática, bem como a busca de soluções para sua viabilidade funcional. E cabe ao conjunto dos usuários dialogar abertamente e sem preconceitos com a proposta.
Marcelo Correa e Castro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Marcelo Galvão Fogaça de Almeida
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