Violência parental: dos Simpsons ao mundo real

Muito retratadas em obras de ficção, as relações abusivas, negligentes e violentas entre pais e filhos podem afetar a saúde física e emocional das crianças, até mesmo na vida adulta

São muitos os desenhos animados, filmes e séries que retratam lares desajustados e relações problemáticas entre pais e filhos.

No seriado animado Os Simpsons, por exemplo, vemos um contraste entre a paternidade negligente e tóxica de Homer Simpson e a maternidade afetuosa e sensata de Marge. Já na série animada Os Padrinhos Mágicos, Timmy Turner é um filho totalmente negligenciado pelos pais, que sequer se atentam às reclamações dele quanto às ações abusivas e violentas da babá Vicky.

No filme It: a coisa, baseado no livro de Stephen King, o personagem Eddie é obrigado pela sua mãe a tomar medicamentos o tempo todo. A mãe afirma que seu filho tem várias doenças, mas a verdade é que ela é quem sofre da chamada Síndrome de Munchausen por procuração, um tipo de abuso infantil em que um dos pais simula sintomas na criança, com a intenção de chamar atenção pra si ou ganhar benefícios. A mesma síndrome foi muito bem utilizada em personagens de outras obras, como Fuja (2020), Ma (2019), The Politician (2019) e O Sexto Sentido (1999).

Será que essas e outras interações problemáticas entre pais e filhos são elementos importantes no desenvolvimento de um jovem?

 

Estilos de criação e a vida dos filhos

Existe um modelo teórico na psicologia denominado estilos parentais, que busca classificar a interação entre pais e filhos com base em dois critérios: o nível de exigência e o nível de responsividade, que diz respeito à sensibilidade dos pais quanto às necessidades dos filhos, à presença do diálogo e do afeto parental (figura 1).

Figura 1. Na psicologia, a interação entre pais e filhos pode ser classificada em quatro diferentes estilos, com base em dois critérios: o nível de exigência e o nível de responsividade (sensibilidade quanto às necessidades dos filhos, presença de diálogo e afeto)

Pais muito exigentes e que possuem baixo nível de responsividade são classificados como autoritários. Esses pais demandam grande obediência dos filhos, às vezes fazendo uso da força física para obtê-la, e são inflexíveis, pouco abertos ao diálogo e às demandas dos filhos.

Muitas pesquisas vêm mostrando que filhos criados sob padrão autoritário costumam apresentar poucos problemas de comportamento e alto desempenho acadêmico, mas menor autoestima e maior medo, frustração, ansiedade, depressão e insegurança nas interações sociais.

Mas não pense que o problema está na alta exigência. Quando se combinam baixo nível de exigência e baixa responsividade, temos o chamado estilo negligente. Esse estilo parental parece estar correlacionado ao desenvolvimento de problemas como ansiedade e depressão nos filhos.

Uma pesquisa feita com mais de 17 mil estudantes de ensino médio identificou que filhos de pais negligentes ou indulgentes (ambos estilos com baixa exigência) tiveram maior chance de relatar o uso de tabaco.

A influência mais positiva parece ocorrer quando se combinam alta exigência e alta responsividade. Pesquisas demonstram que adolescentes educados sob esse estilo parental, denominado autoritativo, têm melhores níveis de adaptação psicológica, autoestima e desempenho acadêmico e menos problemas de comportamento, ansiedade e depressão. Além disso, esse estilo também foi identificado como fator protetivo ao uso de tabaco entre adolescentes.

 

Palmada educa?

Você certamente já ouviu alguém dizer que apanhou dos pais na infância e isso fez dela uma pessoa melhor. Homer Simpson também poderia usar esse argumento, de que apanhou na infância, e dizer que hoje está ótimo e cria seus filhos muito bem. Assim como Homer é incapaz de identificar todos os seus traumas de infância e os efeitos desses traumas em sua vida atual, nós também somos.

Em artigo da revista científica Ciência & Saúde Coletiva, os autores reúnem uma série de resultados de pesquisas que mostram consequências mais comuns da violência familiar para a criança.

O primeiro conjunto de consequências são os agravos físicos, como luxações, fraturas, hematomas, escoriações, cortes e até traumatismos cranianos e rompimento de órgãos, a depender da intensidade da violência.

Há ainda os agravos emocionais, como distúrbios psicossomáticos gastrointestinais, dores abdominais inespecíficas; repercussões psicoemocionais, como a ansiedade ou a depressão; dificuldade de relacionamento, por motivos de agressividade, timidez e isolamento social progressivo; distúrbios do sono e do apetite; e baixa performance social e intelectual.

Estudos norte-americanos mostram que as taxas de abuso de mulheres são mil vezes maiores em homens que presenciaram violência familiar em suas infâncias do que naqueles que não a presenciaram.

Um dos estudos mais amplos e extensos dessa área vem ocorrendo há vários anos nos Estados Unidos. Denominada ‘Experiências adversas na infância, a pesquisa vem avaliando dezenas de milhares de adultos e revelando uma relação poderosa entre as experiências emocionais quando crianças e a saúde emocional e física do adulto. A idade dos adultos avaliados demonstra que o tempo por si só não é capaz de curar algumas das experiências adversas que ocorrem na infância.

Como sintetiza o pesquisador e médico Vincent J. Felitti, da Universidade da Califórnia (Estados Unidos), experiências adversas na infância são tão comuns quanto destrutivas. E isso as torna um dos mais importantes determinantes da saúde e do bem-estar das pessoas, afetando a probabilidade de o indivíduo se tornar tabagista, desenvolver doença pulmonar, tornar-se depressivo ou dependente químico e até se suicidar.

Evidentemente, esses efeitos negativos dependem de uma conjunção de fatores, como a duração e a intensidade da violência, o tipo de violência, o desenvolvimento psicológico e a capacidade intelectual e de resiliência da criança, o vínculo afetivo entre agressor e vítima, entre outros.

Por isso, é impossível prever como seriam Bart e Lisa Simpson adultos. Mas, vendo a relação entre Homer e Bart, principalmente, em que há frequentes episódios de enforcamento, incentivo à briga entre os irmãos, negligência quanto à saúde dos filhos, encorajamento de mentiras, incentivo à aposta, desprezo e desinteresse explícito pelos filhos, podemos imaginar que a probabilidade de Bart, e até mesmo Lisa, carregarem traumas para a idade adulta é considerável (figura 2).

Figura 2. No seriado animado Os Simpsons, a relação entre o pai, Homer, e os filhos, Bart e Lisa, é marcada por violência e negligência

Da mesma forma, não dá para prever o que acontecerá com Timmy. Mas, levando em conta os achados científicos, é difícil pensar que uma criança que chegou a pedir aos seus padrinhos mágicos para trocar de lugar com o cachorro da sua babá (que recebia tratamento mais humano e digno do que ele) chegará livre de traumas à idade adulta.

 

Direito de não sofrer violência

Conforme determina a Constituição Federal de 1988, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

Além disso, incluiu-se, em 2014, no Estatuto da Criança e do Adolescente, uma lei que determina que “a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante” por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, incluindo os pais. Nenhuma pessoa será presa por dar palmadas em seus filhos, mas essa lei prevê medidas de caráter educativo que são definidas conforme a gravidade do caso.

Se Bart Simpson e Timmy Turner fossem crianças no Brasil, seria responsabilidade de qualquer cidadão que identificasse a negligência e a violência que eles sofrem comunicar o fato à rede de proteção dos direitos das crianças e adolescentes (o Conselho Tutelar).

A assistente social Maria José de Souza Coelho, referência técnica na prevenção de violências da Prefeitura de Betim (Minas Gerais), afirma que é possível prevenir a violência intrafamiliar estimulando os indivíduos e as famílias a refletirem sobre as situações violentas que os atingem direta e indiretamente.

Coelho explica que é sempre mais difícil identificar sinais de violência contra crianças quando não há evidências físicas, porque as crianças nem sempre conseguem falar sobre o que está acontecendo e sequer sabem que têm o direito de não sofrer qualquer violência. Cabe aos adultos, sejam estes os responsáveis pelas crianças e adolescentes ou profissionais que lidam com esse público, atentar-se a sinais de violência.

Segundo matéria publicada na BBC Brasil, um dos principais alertas de violência é uma mudança drástica no comportamento da criança. Outros problemas comuns são depressão, baixa autoestima, perda de confiança nas pessoas, alterações no sono e na alimentação, além dos sinais aparentes de agressão (como hematomas).

Portanto, ao ver um episódio de Os Simpsons ou Os Padrinhos Mágicos, ou qualquer outro desenho ou filme que retrate a violência parental com humor, lembre-se de que essas violências acontecem diariamente no mundo real e são muito danosas à criança (a curto, médio e longo prazos), cabendo a todo e qualquer cidadão denunciar às autoridades sempre que tiver alguma suspeita.

Lucas Mascarenhas de Miranda
Físico e divulgador de ciência
Universidade Federal de Juiz de Fora

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