O conceito de simetria na natureza é bem amplo e remete a noções de equilíbrio, proporção, padrão, regularidade, harmonia e beleza. Podemos perceber esse conceito nas asas de uma borboleta ou em construções, como o Taj Mahal (Índia).
No caso desse mausoléu (figura 1), ao dividirmos a construção em duas partes, percebemos que o lado direito é semelhante ao lado esquerdo, se espelhados. Mas, se inspecionarmos detalhes da construção, notaremos que essas duas partes não são idênticas – por exemplo, árvores do lado direito não são iguais às do lado esquerdo.
Houve, portanto, uma quebra da simetria explícita.
Até o início do século passado, os conceitos de simetria eram pouco usados na construção de teorias da física, ciência em que esse conceito é essencial: é uma propriedade física ou matemática de um sistema que permanece inalterada sob algum tipo de transformação.
Por exemplo, o físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955) reconheceu a simetria implícita nas quatro equações propostas por James Clerk Maxwell (1831-1879), nas quais esse físico escocês reuniu, em um só arcabouço teórico, os fenômenos elétricos e magnéticos, mostrando, assim, que a luz é uma onda eletromagnética.
Com essa percepção, Einstein foi capaz de formular, em 1905, sua teoria da relatividade restrita, com a qual mudou, para sempre, os conceitos de espaço e tempo, os quais deixaram de ser absolutos e passaram a ser vistos como ‘elásticos’ (relativos) – ou seja, em certas circunstâncias, o tempo se dilata, e o espaço se contrai.
O reconhecimento da importância das simetrias na natureza representou mudanças sem precedentes na física e passou a servir como guia na formulação de modelos teóricos. Princípios de simetria têm papel fundamental em leis da natureza dotadas de propriedades que permanecem inalteradas sob certas transformações.
Exemplo importante do princípio de simetria em física é a sua relação com leis de conservação. A matemática alemã Emmy Noether (1882-1935) provou, por meio de um teorema, que, para toda simetria, existe uma grandeza física que permanece constante.
As três leis de conservação presentes na teoria do físico e matemático britânico Isaac Newton (1642-1727) são consequências de transformações no espaço e no tempo.
Para nossos propósitos aqui, podemos dizer que essas leis de conservação têm a ver com as seguintes simetrias: o resultado de um experimento baseado nas três leis de Newton não depende da hora, do dia ou mês em que ele é realizado (simetria temporal); nem do local onde é feito (simetria espacial), nem do sentido da rotação (simetria rotacional).
Mas as leis de conservação de Newton só foram descritas formalmente como simetrias da natureza dois séculos depois.
No caso do Taj Mahal, fizemos uma análise geral, ao dividirmos a foto em dois lados, e concluímos que havia uma simetria na construção. Mas uma análise específica revelou uma violação da simetria.
Esses dois tipos de inspeção podem ser extrapolados para a natureza, nos permitindo classificar as simetrias como globais e locais. De modo simples, as primeiras valem para todo o universo, enquanto as outras, apenas para determinada região.
O tempo, claramente, é uma característica global de nosso universo, enquanto a carga elétrica está localizada em partículas que ocupam uma posição específica nesse mesmo universo, sendo, portanto, uma característica local.
No mundo quântico relativístico – ou seja, o das partículas subatômicas que se movem a velocidades próximas à da luz no vácuo (300 mil km/s) –, as implicações de simetria levam à classificação direta e única das partículas elementares (não ‘divisíveis’), as quais são agrupadas em termos de suas propriedades, como massa e spin (‘rotação’).
A combinação dessas características leva à classificação das partículas elementares em hádrons e léptons. O primeiro grupo é composto por quarks (seis tipos, ao todo), que são os ‘tijolos’ básicos da matéria e formam, por exemplo, os prótons e nêutrons. No segundo (também com seis tipos de partículas), estão o elétron e dois ‘primos’ mais pesados dele (o múon e o tau), sendo que cada uma dessas três partículas tem seu respectivo neutrino – estes considerados as partículas mais fugidias da natureza.
A teoria que descreve todas as propriedades e interações (‘forças’) entre as diferentes partículas subatômicas é chamada de modelo padrão das partículas elementares e das interações fundamentais (ou só modelo padrão).
Esse modelo descreve os fenômenos relacionados a três das quatro forças da natureza: a força eletromagnética, responsável, por exemplo, pelo atrito; a força fraca nuclear, envolvida em alguns tipos de radioatividade; e a força forte nuclear, que mantém o núcleo atômico coeso – estas duas últimas forças só agem nas dimensões do núcleo atômico.
Fora do modelo padrão, está a gravidade, regida pela teoria da relatividade geral, de 1915, de Einstein – por sinal, unir essas quatro forças em uma só teoria é o sonho de muitos físicos.
O modelo padrão tem três simetrias: simetria de carga (C), simetria de paridade (P) e simetria de inversão temporal (T). A primeira diz que a quantidade de carga elétrica antes da colisão de duas ou mais partículas deve ser igual àquela depois dessa interação.
A simetria de paridade pode ser descrita assim: a imagem especular de uma interação de partículas deve sofrer apenas as inversões ‘normais’ a esse processo, ou seja, semelhantes às que ocorrem quando levantamos uma das mãos na frente do espelho.
A simetria de inversão temporal diz que, se filmarmos uma interação entre partículas e passarmos o filme ao contrário, ninguém perceberá – como o caso de uma bolha de bilhar que é lançada contra a lateral de uma mesa de bilhar.
De forma independente, as três simetrias são violadas no modelo padrão. Até a década de 1960, acreditava-se que a operação conjunta CP (troca de carga e paridade) fosse, de fato, uma simetria do modelo padrão – ou seja, inviolável. Em qualquer interação entre partículas, a carga elétrica total e a imagem especular não apresentariam ‘anomalias’ (figura 2).
Mas a violação de CP foi observada experimentalmente em 1964 – feito que rendeu um Nobel aos físicos norte-americanos James Cronin (1931-2016) e Val Fitch (1923-2015). E esse resultado – que usou partículas subatômicas e mostrou que a natureza privilegia levemente a matéria em detrimento da antimatéria – mudou o rumo da interpretação sobre um problema crucial em cosmologia: por que nosso universo é composto praticamente só por matéria e não antimatéria? Em outros termos, por que a natureza, violando suas próprias leis, privilegiou a primeira?
Em 1967, o físico russo Andrei Sakharov (1921-1989) usou a violação de CP, entre outras condições, para explicar esse desequilíbrio entre matéria e antimatéria em nosso universo. Portanto, entender em detalhes essa violação e seus mecanismos subjacentes seria compreender por que as coisas (galáxias, estrelas, planetas, humanos, animais, plantas, microrganismos etc.) existem.
Vale notar que, ainda em 1956, dois físicos chineses, Tsung-Dao Lee e Chen-Ning Yang, mostraram que havia violação da paridade em fenômenos regidos pela força fraca nuclear, trabalho que lhes rendeu o prêmio Nobel de física do ano seguinte. Esse resultado teórico foi, logo em seguida, comprovado, nos Estados Unidos, pela física também chinesa Chien-Shiung Wu (1912-1997).
Atualmente, o méson B (composto por um quark e um antiquark) é a partícula mais promissora para se estudar a violação de CP. As partículas resultantes da desintegração (ou decaimento) desse méson – que pode ser carga positiva, negativa ou nula – apresentam violação de CP.
Entre os diferentes tipos de decaimento do méson B, dois, em especial, têm apresentado resultados bem intrigantes: o méson B que decai em três mésons pi (B± → π+ π– π± ) e o méson B que decai em dois mésons K e um méson pi (B± → K+ K– π±).
Para obtermos os mésons B, precisamos de um acelerador de partículas – como o LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de Hádrons), da Organização Europeia de Pesquisas Nucleares (CERN), em Genebra (Suíça) – capaz de acelerar e colidir prótons a uma velocidade próxima à da luz.
Os méson B resultantes dessas colisões são detectados pelo experimento LHCb, que tem como um de seus objetivos a observação e caracterização da violação de CP.
No caso do LHCb, uma medida de violação de CP consiste em uma contagem simples de partículas. Para cada colisão de prótons, contamos quantos decaimentos foram B+ (nB+) e quantos foram B– (nB–).
Uma conta igualmente simples – após a remoção de outros eventos que podem influenciar na medida – é feita: (nB– – nB+)/(nB– + nB+). O resultado – tecnicamente denominado ACP – fornece uma medida de violação de CP.
Se, em 1 mil eventos, tivermos 500 B– e 500 B+, então, não temos violação de CP (ACP = 0). Mas os resultados do LHCb reportaram, para B± → π+ π– π±, uma evidência de violação de CP global de 5,8%, considerando os erros associados à medida. Para B± → K+ K– π±, a violação de CP global reportada é de 12,3%.
Esses valores – publicados no periódico Physical Review D (v. 90, p. 112004, 2014) – não foram surpreendentes, pois o próprio modelo padrão prevê violação de CP nos decaimentos do méson B. Mas a inspeção de uma propriedade desses decaimentos (tecnicamente, o espaço de fase) revelou algo inesperado.
Se a quebra de simetria global nos resultados do LHCb não causou muito espanto, sua congênere local foi motivo de muito interesse. Para entendê-la, é preciso dizer que em um decaimento de três corpos (partículas), como o do méson B, as velocidades e energias dos produtos estão vinculadas entre si.
Esse vínculo nos permite construir um ‘gráfico’ (tecnicamente, espaço de fase) a partir dessas variáveis. Cada ponto nesse espaço representa um méson B que foi gerado na colisão de prótons. Porém, o que nos interessa aqui é que esses pontos permitem identificar as chamadas ressonâncias, isto é, partículas intermediárias entre os méson B e os produtos finais (mésons π ou mésons K).
A observação de regiões desse gráfico – que mostram ou excesso, ou ausência de pontos – revela comportamento que não é semelhante ao decaimento global. Algumas dessas regiões mostraram valores bem elevados de assimetria.
Em especial, determinada região do espaço de fase apresentou violação de CP de 44,7%, para o B± → π+ π– π±, e de – 66,4% para o B± → K+ K– π±. Esses resultados estão, respectivamente, em Physical Review Letters (v. 124, p. 031801, 2020) e Physical Review Letters (v. 123, p. 231802, 2019).
Um dos atores por trás desses altos percentuais de violação de CP é um mecanismo conhecido como reespalhamento – para a física de altas energias, espalhamento pode ser entendido como a colisão de duas partículas; portanto, reespalhamento, é quando esse processo ocorre mais de uma vez.
Por meio dele, nos dois decaimentos em questão do méson B, um par ππ se transforma em um par KK. O reespalhamento também explica por que um decaimento é positivo e outro negativo: isso se dá pelo fato de um decaimento se ‘transformar’ em outro.
Outros mecanismos podem estar por trás desses elevados valores de violação de CP. E isso aumenta ainda mais a importância desse tipo de análise.
Nesse contexto de estudos com partículas elementares, os experimentos de neutrinos têm, para o modelo padrão, resultados ainda mais dramáticos que os com méson B.
Neutrinos são partículas elementares, com massa extremamente diminuta – fato descoberto nos últimos anos – e extremamente fugidias – por exemplo, podem atravessar enormes volumes de massa, como a Terra, sem ‘colidir’ (interagir) com a matéria. Como vimos, há três tipos deles: neutrino do elétron, neutrino do múon e neutrino do tau.
O mistério em relação a essas partículas – teorizadas ainda em 1930 – começou na década de 1960. O experimento Homestake (Estados Unidos) tinha como objetivo contar o número de neutrinos do elétron emitidos pelo Sol. Mas obteve resultados discrepantes com o modelo, considerado muito confiável. Apenas entre 1/3 e 1/2 dos neutrinos previstos pela teoria, de fato, chegavam à Terra.
Testes independentes mostraram que nem o modelo, nem os resultados tinham qualquer problema. A solução só foi proposta anos mais tarde: neutrinos podem ‘mudar de personalidade’, ou seja, se transformar (tecnicamente, oscilar) de um tipo em outro.
Portanto, a explicação para os resultados de Homestake era a seguinte: neutrinos do elétron, em seu caminho do Sol ao nosso planeta, se transformam em neutrinos do múon ou do tau. Essa oscilação trazia a reboque uma conclusão inevitável e surpreendente: neutrinos só poderiam oscilar se tivessem massa – muito pequena, mas não nula. E, segundo o modelo padrão, a massa dessas partículas deveria ser zero.
Desde então, vários experimentos tentaram explicar essa disparidade entre experimento e teoria – e, para isso, usaram várias fontes produtoras de neutrinos (Sol, atmosfera terrestre, aceleradores e usinas nucleares). Para entender esse enigma, é preciso estudar o que os físicos denominam ângulos de mistura (três ao todo), que, em termos simples, dão a probabilidade de um neutrino de um tipo se transformar em outro.
Um desses experimentos, o Double Chooz (França), que estudou neutrinos gerados em reatores nucleares, publicou – em Journal of High Energy (86, 2014) – a medida do último dos três ângulos de mistura dos neutrinos. Com esse resultado, fecha-se um ciclo de quase meio século dedicado a medir esses três ângulos.
Mais: no ano passado, o experimento T2K (Japão) indicou haver violação de CP em neutrinos, abrindo, assim, nova era nos experimentos que pavimentarão uma física para além do modelo padrão. Esse resultado saiu em Nature (v. 580, p. 339-344, 2020).
O modelo padrão das partículas elementares e interações fundamentais é uma teoria de sucesso, aprovada nos testes mais severos e caso exemplar de onde o intelecto humano pode nos levar.
Hoje, conhecemos seis quarks e seis léptons – entre estes últimos, três neutrinos. Há também, no modelo padrão, os bósons, partículas que agem como ‘carregadores’ das três forças que estão no modelo padrão (forte, fraca e eletromagnética).
Recentemente, com grande repercussão na mídia mundial, mais uma partícula foi incorporada a esse cardápio: o bóson de Higgs, que explica por que grande parte das partículas subatômicas tem massa.
Mas esse sucesso veio, ao longo dos anos, acompanhado de evidências importantes de que há mecanismos não descritos por esse modelo, ou seja, uma física para além desse ferramental teórico – a oscilação de neutrinos é um deles.
A violação de CP tanto nos mésons B quanto nos neutrinos é uma janela ampla para a compreensão do universo. E, no fundo, para responder a questão filosófica tão antiga como profunda: por que as coisas existem?
Devemos nossa própria existência a essa ‘anomalia’ da natureza, que permitiu que uma diminuta fração de matéria – um átomo a cada dez bilhões deles, segundo Sakharov – sobrevivesse à aniquilação entre matéria e antimatéria nos primeiros instantes do universo e não virasse radiação (luz).
Apesar do sucesso do modelo padrão até este momento, os físicos têm como certo que novos mecanismos vão aparecer. A quebra de simetria traz luz para essa discussão. E avanços experimentais nessa área de pesquisa podem, em médio e longo prazos, revelar novas simetrias no mundo subatômico, o que modificará a forma como as teorias em física descreverão as interações entre as partículas elementares.
Alvaro Gomes
Departamento de Física,
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
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