Animais assassinos: do cinema para a realidade

Muitos filmes de terror transformam bichos em monstros temíveis, mas nem todo predador das telas é igualmente perigoso no mundo real

GODZILLA VS. KONG (2014) CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

A presença de animais assassinos no cinema é tão intensa que podemos considerar como um subgênero cinematográfico, geralmente associado ao gênero terror.

Um recurso que foi muito utilizado pelos roteiristas para transformar um animal em um monstro temível foi torná-lo gigante. A década de 1950 foi o auge dos filmes de animais assassinos gigantes. Obras como O monstro do mar (1953), Godzilla (1954), Tarântula (1955) e O escorpião negro (1957) são alguns dos inúmeros exemplos.

Com o passar dos anos, a busca pelo realismo nas telas fez com que os animais gigantes fossem substituídos pelos de tamanho normal, embora ainda assassinos. Nessa nova fase, obras como Os pássaros (1963) e Tubarão (1975) fizeram estrondoso sucesso e incentivaram a produção de muitos outros filmes.

Engana-se quem pensa que, nas décadas mais recentes, os animais diminuíram sua presença nas telas. O advento do CGI (imagens geradas por computador) e lançamentos como Jurassic Park deram um fôlego sem precedentes para esse subgênero, levando a uma explosão de novas produções nos anos que se seguiram.

De acordo com o pesquisador e paleontólogo Luciano Luis Rasia, da Universidade Nacional de La Plata, foram lançados 190 filmes de animais assassinos até os anos 2000 (ou seja, em mais de 100 anos desde a origem do cinema), enquanto nos 20 anos seguintes foram produzidos mais de 250 filmes.

FONTE: HTTPS://JGEEKSTUDIES.ORG/2020/04/17/KILLER-ANIMALS-IN-FILMS-REALITY-VS-FICTION/

Mas uma pergunta que podemos fazer é: será que esses animais assassinos dos filmes são igualmente perigosos no mundo real? E será que os animais que mais fazem vítimas humanas no mundo real são representados no cinema?

 

Campeões de audiência

TUBARÃO (1975) CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

A pesquisa de Luciano Rasia aponta que, dentre os filmes de animais assassinos, o campeão de aparições é o tubarão. Marcando presença como grande vilão em pelo menos 80 filmes na história do cinema, esses peixes raramente são responsáveis por mortes humanas no mundo real.

A má reputação dos tubarões pode ser explicada pela forma como são retratados nos meios de comunicação e por um grande desconhecimento da população sobre eles, como aponta a pesquisa de Marina Silva dos Santos, da Universidade Federal do Ceará.

Apesar da fama de vilões aquáticos, os tubarões são essenciais na manutenção do equilíbrio dos ecossistemas de que fazem parte. E o grande interesse comercial por eles os torna alvos preferenciais da pesca predatória, que provoca drásticos desequilíbrios ambientais.

O segundo animal mais retratado como assassino no cinema é o crocodilo (37 filmes). Responsáveis por uma média de apenas 1.000 mortes por ano no mundo inteiro, esses répteis já não proporcionam tanto medo nas pessoas quanto o tubarão.

Há ainda outros animais bem presentes nas telas, mas que são responsáveis por poucas ou quase nenhuma morte de humanos, como aranhas (18 filmes), primatas não humanos (16 filmes), abelhas (12 filmes), pássaros (11 filmes), formigas (9 filmes) e até porcos (6 filmes).

 

Mortais no mundo real e nas telas

Nem todos os animais vilões de filmes são tão inocentes no mundo real. Presentes em pelo menos 23 filmes, as cobras estão entre os cinco animais mais mortais no mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que as cobras envenenam 2,7 milhões de pessoas anualmente. Dessas, entre 81 mil e 138 mil morrem por dificuldades de acesso a soros e cerca de 300 mil ficam com deficiências permanentes.

No Brasil, as principais causadoras de morte são as jararacas, espécie altamente venenosa que se camufla muito bem em folhagens. As maiores ocorrências de mortes por cobra são na África, Ásia e América Latina, principalmente em países com sistemas de saúde mais deficitários e com baixa produção de soros.

Uma das formas de se prevenir é sempre se atentar ao local em que está pisando e evitar matas muito fechadas. Ao sofrer uma mordida de cobra venenosa, nada de tentar chupar o veneno ou fazer um torniquete. Busque imediatamente o posto de saúde mais próximo para receber um soro antiveneno.

Ter conhecimento sobre cobras pode ser muito útil, tanto para saber identificar se uma espécie é venenosa quanto para informar no posto de saúde a espécie que te mordeu e ter acesso a um soro mais específico e, portanto, mais eficiente.

ANACONDA (1997) CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

Além das cobras, cachorros assassinos também aparecem com alguma frequência no cinema e, de fato, esses animais provocam a morte de cerca de 35 mil pessoas por ano. Embora seja considerado ‘o melhor amigo do homem’, o cachorro é o principal vetor da raiva em países que têm alta ocorrência dessa doença e muitos cães de rua (como é o caso da Índia).

Você poderia argumentar que o responsável pela morte por raiva é o vírus da família Rhabdoviridae (que tem formato de uma bala de revólver) e que o cão não tem nenhuma culpa. Mas é inegável que os cachorros ajudam a provocar essas mortes.

A raiva é uma doença altamente perigosa e letal, que pode ser transmitida quando a saliva do animal infectado penetra na pele de uma pessoa (através de uma mordida ou arranhão). Além do cachorro, a raiva pode ser transmitida por todos os demais mamíferos, como gatos, bois, cavalos, porcos, raposas, gambás, primatas e morcegos.

A infecção por esse vírus é extremamente rápida. Nos primeiros dois dias, já há sintomas como febre, mal-estar, náuseas, entre outros. Em seguida, os sintomas evoluem para ansiedade, delírios, espasmos musculares, convulsões, paralisia, retenção urinária e intestinal. E, antes mesmo de completar uma semana, o paciente entra em coma e morre.

Por isso, tome cuidado com animais de rua e, principalmente, animais silvestres. Se sofrer mordida ou arranhão de um animal desconhecido, um dos caminhos é observar se o animal possui os sintomas da raiva (que também são rápidos e matam o animal em poucos dias). Identificada qualquer suspeita de infecção por raiva, busque um posto de saúde imediatamente para tomar soro antirrábico.

 

Os esquecidos do cinema

Se os mamíferos são vetores de algumas doenças, como a raiva, existem outros animais que também carregam microrganismos patogênicos altamente perigosos e são responsáveis pela morte de muitas pessoas no mundo.

Os caramujos, por exemplo, moluscos que habitam preferencialmente regiões aquáticas (diferentemente dos caracóis, que são terrestres), são responsáveis por algumas doenças, sendo uma das mais perigosas a esquistossomose (ou barriga d’água). A ocorrência dessa doença tropical, causada por um microrganismo chamado Schistosoma mansoni, tem relação direta com a falta de saneamento básico. Segundo a OMS, o número de mortes anuais por esquistossomose é muito incerto, podendo variar entre 20 mil e 200 mil mortes.

Outro animal esquecido dos filmes é o percevejo. Responsável pela transmissão de algumas doenças, esse aracnídeo é o vetor da doença de Chagas. Segundo dados da OMS, cerca de 6 a 7 milhões de pessoas possuem essa doença e mais de 7 mil morrem anualmente por essa razão. Considerada um problema de saúde pública em muitos países, a doença provocada pelo protozoário Trypanosoma cruzi tem grande complexidade e uma evolução clínica bastante variada.

Por fim, os animais mais mortais do mundo que são completamente ignorados no cinema são… os mosquitos! A OMS estima que esses insetos são responsáveis pela morte de mais de um milhão de pessoas no planeta a cada ano. Boa parte dessas mortes se deve à malária, causada pelo protozoário Plasmodium. Mas outras doenças transmitidas por mosquitos também possuem alta mortalidade em países tropicais, entre elas, a febre amarela, a dengue, a febre de Chikungunya e a doença causada pelo vírus Zika.

AEDES AEGYPTI CRÉDITO: NATIONAL INSTITUTE OF ALLERGY AND INFECTIOUS DISEASES (NIAID);DIVULGAÇÃO

Impactos da má reputação de alguns animais

Em janeiro de 2018, no auge da ocorrência de febre amarela no Brasil, diversos macacos foram mortos por pessoas que acreditavam que o primata era a causa (ou um transmissor) da doença. Além de não transmitirem para humanos, os macacos também eram vítimas da doença e ajudavam a identificar locais de transmissão.

Mais recentemente, surgiram muitos casos de extermínio de morcegos, pela crença de que isso deixaria as pessoas menos suscetíveis a se contaminarem pelo novo coronavírus.

De fato, esses mamíferos (e tantos outros animais) são potenciais transmissores de algumas doenças, mas matá-los não traz nenhum benefício ou segurança para nós, muito pelo contrário. Além de provocar desequilíbrios graves nos ecossistemas, matar animais silvestres em condições anti-higiênicas pode dar espaço para o surgimento de novos patógenos, conforme alertam especialistas.

Portanto, não podemos deixar que a reputação de determinados animais seja construída somente pelo cinema (ou pela mídia, ou por falsas informações e crenças). Uma educação ambiental de qualidade é essencial para que saibamos tanto nos proteger de ameaças reais (sem precisar exterminar nenhuma espécie) quanto protegermos os animais e os ecossistemas de que fazem parte.

Qualquer desequilíbrio na natureza traz prejuízos para nós. Afinal, muitas das doenças que nos acometem resultaram de desenfreada destruição de biomas e do aquecimento global, pelos quais somos responsáveis.

Lucas Mascarenhas de Miranda
Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

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