A guerra na Ucrânia e a nova ordem mundial

Nos últimos tempos, o cientista político Maurício Santoro vem maratonando uma série que, curiosamente, está também espelhada nos noticiários do mundo inteiro: Servo do Povo, que catapultou Volodymyr Zelensky à presidência da Ucrânia. “A série, que dá nome também ao partido político do presidente, é essencial para entendermos a trajetória política dele e até o conflito atual”, diz o professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Nesta entrevista, Santoro faz um paralelo entre o comediante Zelensky e o autoritário Vladimir Putin, avalia os reflexos de toda a crise no mundo, inclusive no Brasil, e prevê uma nova ordem mundial no pós-guerra: “O que vemos agora é o enterro das últimas ilusões do pós-guerra fria de que surgiria uma ordem global marcada pela paz entre as grandes potências. A política internacional fica mais parecida com a era pré-Primeira Guerra, com grandes impérios e potências sempre em disputa. Hoje temos um bloco com EUA e União Europeia, e temos a Rússia e a China. Ou seja, um mundo mais complicado, mais instável”.

CRÉDITO: FOTO CEDIDA PELO ENTREVISTADO

CIÊNCIA HOJE: O presidente da Rússia, Vladimir Putin, constantemente mobiliza o passado para justificar os ataques à Ucrânia. Por exemplo, ele costuma lembrar que foram os soviéticos que libertaram a Europa do nazismo e que atacou a Ucrânia porque o país tem uma política nazifascista. Em que medida esse passado da Segunda Guerra pode servir para as tentativas de fortalecimento da influência russa?

MAURÍCIO SANTORO: São duas influências muito fortes, não só da Segunda Guerra Mundial, mas desse passado soviético ainda muito recente. Esses 22 anos do governo Putin podem ser interpretados como uma resposta aos traumas que a população russa sofreu com o colapso da União Soviética.  A transição para uma Rússia independente, no início dos anos 1990, foi um período de colapso da economia e inflação muito alta quando se passou do sistema de preços controlados a uma economia de livre mercado. Esse processo prejudicou a população comum e enriqueceu um grupo pequeno, que tinha relações políticas privilegiadas com o Estado, os chamados oligarcas. Putin surge no final dos anos 1990, numa ascensão política meteórica, e se consolida como um presidente que oferece à população russa um bem público muito importante, a estabilidade, a segurança social e econômica. E ele faz isso usando também uma visão nostálgica da União Soviética. Ele diz que “quem não sente saudade da União Soviética não tem coração, mas quem quer restaurá-la não tem cabeça”. Ou seja, ele concorda que aquele mundo passou, mas tem um discurso de fazer com que o povo se sinta orgulhoso do passado soviético. Talvez a maior razão de orgulho patriótico deles seja a vitória contra o nazifascismo. Foram eles que assumiram o maior fardo na derrota de Hitler e dos regimes nazifascistas. Representou também o auge da influência política internacional soviética. Putin joga com esse passado para defender suas políticas do presente.

No que diz respeito à Ucrânia, Putin esfrega sal numa ferida histórica. A cultura ucraniana tem mais de mil anos, mas a Ucrânia como estado independente é uma invenção recente, vem de 1991. É um país que vive ainda as dores do parto de se construir como uma nação independente. Putin dialoga com o movimento nacionalista russo, que, em suas correntes mais extremas, nega o direito de a Ucrânia a existir como estado independente, a considera, simplesmente, uma região da Rússia. E Putin já questionou esse direito publicamente em vários momentos.

CH: A Rússia estar cercada por países que ingressaram na Otan representa, de fato, risco ao país ou é mera desculpa para a invasão à Ucrânia?

MS: Por que a Otan tem uma importância tão grande nesse debate sobre a guerra? A Otan é um caso raro na História de uma aliança militar permanente em tempos de paz. A aliança foi criada em 1949, juntando Europa ocidental, Estados Unidos e Canadá, para se precaver de um eventual ataque soviético. Quando a União Soviética acabou, muitos se perguntaram se a Otan continuaria. Kenneth Waltz (1924-2013), o principal teórico de relações internacionais norte-americano, escreveu um artigo muito famoso, nos anos 1990, no qual ele dizia que os dias da Otan não estavam contados, mas os seus anos, sim. Só que não foi isso que aconteceu. A Otan cresce na direção do Leste, incorporando o antigo bloco soviético na Europa central e oriental, países como a República Checa, Polónia e Hungria. Abarcou, inclusive, países que foram parte da União Soviética, como Estônia, Letônia e Lituânia. Mas por que a Otan sobreviveu e se expandiu? A Rússia pós-soviética ainda era vista como uma ameaça, era importante manter a Alemanha dentro de um acordo de segurança coletivo e fazer com que os Estados Unidos continuassem a garantir a segurança europeia, impedindo que voltassem a uma posição mais isolacionista. Além disso, os anos 1990 na Europa foram marcados pelas guerras nos Balcãs. E a Otan lutou contra a Sérvia para assegurar um acordo de paz. Depois do 11 de setembro, ela se reinventou como uma aliança destinada a combater o terrorismo. Dito isso, claro que qualquer governo russo estaria preocupado com o que a expansão da Otan para o Leste europeu significa em termos de uma ameaça à sua segurança nacional. Mas uma coisa é estar preocupado, e outra é ir à guerra. A guerra é uma escolha, não é uma necessidade. Poderia ter sido evitada em situações por mais de 15 anos. Acredito que seja fruto de uma visão política do governo Putin de que a Rússia é algo à parte do Ocidente, com valores políticos diferentes, numa rejeição do liberalismo e da própria democracia. No final dos anos 1980, Gorbachev buscava um espaço geopolítico que aproximasse a União Soviética da Europa. Chegou-se a cogitar de a Rússia se juntar à Otan. Teria sido um mundo com uma política internacional mais estável.


A Otan é um caso raro na História de uma aliança militar permanente em tempos de paz

CH: Putin sairá fortalecido ou a guerra foi um tiro que saiu pela culatra?

MS: A guerra enfraquece Putin e pode colocar um fim à sua longa presidência. Nesses 22 anos de governo, Putin lutou várias guerras que, no geral, foram favoráveis a ele. A segunda guerra da Chechênia, a guerra da Geórgia, o início da intervenção militar na Ucrânia – com a anexação da Criméia –, o apoio aos separatistas Donetsk e Lugansk e a intervenção militar na Síria. Embora Putin não tenha conseguido tudo o que quis, sua popularidade foi alimentada e foi restaurada a ideia da Rússia como uma grande potência. Houve sanções e algum isolamento, mas a Rússia sediou as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Isso não é um país isolado. Mas, até agora, os resultados foram muito ruins para Putin. Se as informações ucranianas forem corretas, mais russos morreram, em três semanas, do que americanos em 15 anos no Iraque. Do ponto de vista econômico, o Ocidente respondeu com um pacote de sanções extremamente duro que vai jogar a economia da Rússia numa recessão em 2022. Os bancos de investimento americanos estimam que o PIB russo pode cair de 5% a 10%, numa queda maior do que a da crise do final dos anos 1990. E a desvalorização brutal do rublo destrói o poder de compra da classe média russa no exterior e provoca um aumento muito grande da inflação. Pode, eventualmente, levar à moratória da dívida externa e até hiperinflação, um cenário com um grande risco de caos econômico, num país que é uma das 15 maiores economias do mundo. Isso vai jogar ondas de choque na economia global, inclusive aqui no Brasil, pela questão de combustíveis e fertilizantes. Quando foi a última vez que houve algo assim no mundo? Na crise financeira global de 2008, com alta global dos preços dos alimentos em vários países, que se traduziram em protestos, manifestações de rua e distúrbios sociais, como a Primavera Árabe. Uma economia global mais aberta, mais integrada, como tem sido nos últimos 30 anos, significa uma economia mais instável e mais propensa a crises quando um dos grandes atores globais é pesadamente atingido.


A guerra enfraquece Putin e pode colocar um fim à sua longa presidência

CH: O presidente da Ucrânia é personagem midiático contemporâneo com discurso antipolítica ou trata-se de um herdeiro da direita que deu base ao nazifascismo com roupagens modernas?

MS:Eu estou vendo a série que catapultou Volodymyr Zelensky à fama e à presidência, O servidor do povo, fundamental para entender a trajetória dele, assim como o filme que deu continuidade à trama. Ele vive um professor de história que faz um desabafo sobre corrupção e política ucraniana que é gravado em vídeo pelos alunos, viraliza e o leva à presidência. É um discurso muito antipolítica e moralista, voltado para a ideia de que a corrupção é a raiz de todos os males. Mas a série é interessante e ganhou um significado político muito diferente com a eleição dele para presidente e os momentos que a Ucrânia está vivendo agora na guerra. Politicamente, como se classifica Zelensky? Ele vem do leste da Ucrânia, região majoritariamente russa, e é um presidente judeu num país que tem uma história pesadíssima de antissemitismo. No segundo turno, foi eleito com 71% dos votos, mas quando assumiu, em 2019, começou a ter problemas graves e sua popularidade caiu para 25% porque ele não estava conseguindo trabalhar com o Congresso, assim como acontece na série.  Ele criou  seu partido político, que tem o mesmo nome da série, o Partido do Servidor do Povo, o que mostra essa ausência de um programa político mais bem definido. É basicamente uma operação midiática. Só que aí veio a guerra. Ele cometeu erros graves nos meses anteriores, principalmente ter negado a possibilidade de que aquela guerra poderia acontecer, e lidou mal com vários temas importantes, como a Otan e a União Europeia. A Ucrânia não ingressou em nenhuma delas e entrou em rota de colisão com a Rússia. Mas, a partir do momento que a guerra começou, as atitudes pessoais dele têm conquistado a opinião pública ucraniana e internacional. A popularidade saltou para 90%. Zelensky é um ator e está vivendo o grande papel de sua vida.

Sobre a extrema-direita, existem movimentos nacionalistas na Ucrânia desde meados do século 19, sobretudo no período das guerras mundiais e da União Soviética. Estavam presentes nos protestos de 2014, que culminaram na queda do presidente Viktor Ianukovytch, mas isso não significa que o governo ucraniano hoje seja neonazista ou de extrema-direita. Sim, existe um papel forte de anticomunismo, como era de se esperar num país que viveu 70 anos na União Soviética, um estado que reprimiu suas aspirações nacionais à independência. Mas há todo um discurso oficial dos russos que utiliza isso como uma razão para guerra e vai tentar magnificar ao máximo todas as manifestações desses movimentos.

CH: Quais as chances de uma articulação sino-russa enfraquecer o poder e a influência estadunidense na Europa do Leste?

MS:Essa é uma pergunta chave para entender essa nova ordem global que está surgindo. A Rússia e a China se tornaram países muito próximos nos últimos 20 anos e nem sempre foi assim. E eles praticamente foram à guerra no final dos anos 1960, num conflito com mil mortes. Quando a União Soviética chegou ao fim, era considerada pelos chineses como a sua principal ameaça. Essa foi uma das razões pelas quais a China maoísta se aproximou dos Estados Unidos, iniciando o processo que culminaria nas grandes reformas econômicas dos anos 1980. Essa reaproximação sino-russa do século 21 vem de uma série de interesses políticos e econômicos em comum. Os dois governos compartilham uma visão muito crítica do Ocidente e um desejo de mudar essa ordem global liderada pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Isso posto, essa guerra na Ucrânia criou muitas tensões para essa relação bilateral. A China não declarou apoio à invasão da Ucrânia e não tem feito nada que possa significar isso, apenas tem evitado criticar a Rússia publicamente e culpado Estados Unidos e União Europeia pela guerra, além de oferecer ajuda econômica aos russos. O mais importante para a China é como o Ocidente está respondendo economicamente à guerra, e a profundidade dessas sanções econômicas contra Rússia está sendo encarada como um alerta, como algo que pode ser usado no caso, por exemplo, de um conflito contra Taiwan. E os chineses vão começar a pensar maneiras de se defender desse tipo de sanção. Em médio prazo, uma das consequências da guerra da Ucrânia vai ser uma ordem global mais fragmentada, com países como China, Rússia e Irã buscando construir alternativas econômicas, instituições financeiras e multilaterais para se precaver de uma dependência excessiva do Ocidente. Provavelmente veremos uma expansão do sistema de pagamentos bancário chinês e um esforço maior da China em internacionalizar a sua moeda. Mas a guerra é uma má notícia para os chineses, e ela coincide com o pior momento da pandemia para a China.


Em médio prazo, uma das consequências da guerra da Ucrânia vai ser uma ordem global mais fragmentada, com países como China, Rússia e Irã buscando construir alternativas econômicas, instituições financeiras e multilaterais para se precaver de uma dependência excessiva do Ocidente

CH: : E a Alemanha nesse tabuleiro?

MS:A Alemanha é um país aliado dos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial, que, ocasionalmente, teve uma política externa mais autônoma. Essa guerra na Ucrânia vem logo depois o final de um período muito importante da história contemporânea alemã, que foi o fim dos 15 anos de governo da Angela Merkel e a substituição dela por Olaf Scholz, que, durante a campanha, criticou a Merkel por sua passividade na  política com relação à Rússia e à China. A Alemanha tem uma dependência econômica grande da Rússia pela questão da segurança energética. Então, é impressionante o que ela tem feito, considerando aí todas essas todas essas limitações econômicas. A guerra na Ucrânia está fazendo com que a Alemanha volte a investir muito nas suas próprias forças armadas, o que seria um tema tabu há 10 ou 20 anos atrás, mas que está sendo bem recebido na Europa de maneira geral. Afinal, é a maior economia do bloco, e qualquer esforço europeu para se contrapor à Rússia vai precisar da participação alemã.


A guerra na Ucrânia está fazendo com que a Alemanha volte a investir muito nas suas próprias forças armadas, o que seria um tema tabu há 10 ou 20 anos atrás

CH: Considera que as tensões entre Rússia e Estados Unidos hoje são comparáveis à Guerra Fria?

MS:As tensões entre Estados Unidos e Rússia são muito altas e já vinha sendo assim pelo menos desde o início do século 21 e, provavelmente, seguirão dessa forma num futuro próximo. Mas eu, pessoalmente, não gosto da expressão “nova Guerra Fria” porque ignora a característica central dessa nova ordem global dos últimos 30 anos, que é a economia global, mais aberta e mais interdependente. Na Guerra Fria, havia dois grandes blocos com sistemas políticos e econômicos muito diferentes. Não é o caso agora. Embora tanto a China como a Rússia sejam regimes autoritários, ambos têm economia de mercado e não são sistemas econômicos alternativos ao Ocidente.

CH: Como vê o Brasil nesse cenário, a postura de nossa política internacional?

MS:O Leste Europeu é uma região distante do Brasil política e culturalmente. Mas a guerra chegou até nós, sobretudo, pela deterioração das condições econômicas brasileiras, em particular, no aumento dos preços dos combustíveis, dos fertilizantes e dos alimentos. Do ponto de vista político e diplomático, a política externa brasileira para guerra tem sido muito contraditória, com três visões diferentes. Na ONU, os diplomatas brasileiros votaram contra a Rússia, denunciando a guerra tanto no Conselho de Segurança como na assembleia-geral. Já o presidente Bolsonaro tem posição de neutralidade, mas permeada por elogios ao Putin. E a terceira posição é aquela que apareceu nas falas do vice-presidente, o General Mourão, que, a meu ver, expressam o que pensam as Forças Armadas brasileiras, numa visão muito crítica e muito próxima da postura dos EUA e da União Europeia. Agora, de maneira geral, o Brasil costuma ser muito cauteloso, muito crítico no uso de sanções internacionais. E a Rússia é um parceiro econômico e político importante do Brasil, por conta dos fertilizantes, por exemplo, e dos Brics. Isso é um indicador também dos desafios para o Brasil dessa nova ordem global. O Brasil é muito próximo política e culturalmente dos Estados Unidos e da União Europeia, mas, economicamente, está cada vez mais próximo da Ásia. É preciso cautela em suas reações.


Do ponto de vista político e diplomático, a política externa brasileira para guerra tem sido muito contraditória, com três visões diferentes

Por Valquíria Daher
Jornalista, Instituto Ciência Hoje

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