O début e as aventuras amorosas nada ortodoxas de uma das mais famosas escritoras francesas do século 20, Sidonie-Gabrielle Colette (1873-1954), são o tema do longa-metragem que leva seu sobrenome. Colette (produção de Grã-Bretanha e Estados Unidos, de 2018) é um drama biográfico dirigido por Wash Westmoreland, que, com obras relacionadas à homossexualidade na filmografia, foi além e realizou uma incursão no feminismo, na bissexualidade e na transgeneridade.
O diretor escolheu retratar uma personagem histórica, uma escritora francesa em luta não só por direitos autorais, mas também por uma vida sexual livre dos padrões de gênero socialmente estabelecidos. Isso no início do século 20, quando vigoravam na França institutos jurídicos que negavam os direitos individuais às mulheres e as submetiam legalmente à autoridade dos homens. Colette desafiou a estrutura patriarcal ao pleitear ocupar espaços e desempenhar comportamentos tradicionalmente masculinos.
O filme narra a juventude da personagem-título (interpretada por Keira Knightley), a vida bucólica, quase idílica, em Saint-Sauveur-en-Puisaye, na Borgonha, desde seu primeiro matrimônio, aos 20 anos, à separação, pouco depois dos 30. O marido, Henri Gauthier-Villars (Dominic West), um respeitado editor e romancista, conhecido como Willy, era 15 anos mais velho e levava uma vida extravagante e libertina. Em 1900, passou a incentivar Colette a tornar-se escritora e, desesperado com as dívidas, decidiu ganhar dinheiro com os escritos da esposa, trancando-a em um quarto até que ela finalizasse seu primeiro romance, Claudine à l’école.
O livro foi um enorme sucesso de vendas e, logo, o público, especialmente o feminino, começou a exigir mais. No entanto, durante anos, os leitores jamais desconfiaram que as vívidas e sensuais histórias de Claudine eram escritas por uma mulher. Willy levou o crédito pela franquia das aventuras da personagem até 1906. Em 1907, o quinto livro,La Retraite Sentimentale, teve a assinatura de Colette Willy, que aí começou sua luta pelo divórcio e pela autoria de todos os seus romances.
A literatura alçou o casal à fama em Paris. A personagem Claudine, o alter ego de Colette, virou celebridade e, rompendo com padrões heteronormativos e binários, influenciou jovens mulheres parisienses da Belle Époque, que passaram a se identificar com visuais andróginos, exibindo cabelos curtos, roupas masculinas e buscando satisfação sexual para além das relações heterossexuais e restritas ao matrimônio.
Willy era o grande agenciador e quem mais lucrava com a franquia, que vendeu também perfumes, sabonetes, cigarros etc. Durante esse período, Colette experimentou a dança e o teatro, representando personagens que se desnudavam e ousavam demonstrações lesboafetivas. Teve vários relacionamentos com mulheres, o mais duradouro com a Condessa de Balbeuf, ou simplesmente Missy. A escritora ainda se casou novamente, dessa vez, com um homem bem mais jovem.
A Colette mais madura, autora do famoso romance Gigi (1944), não apareceu no filme. Westmoreland preferiu se ater aos anos mais turbulentos da vida da escritora, quando nasceram seus romances e quando suas experiências sexuais se intensificaram. Infelizmente, a relação entre os romances de Colette e sua vida pessoal foi apenas narrada de forma trivial, linear e convencional.
A despeito disso, estamos diante de um bom drama biográfico, com atores competentes, bela fotografia e reconstituição de época correta. A trilha sonora de Thomas Adès é romântica, intensa, clássica. A narrativa é clássica, causal, centrada no enredo de fácil compreensão, o que não é demérito, até porque o convencional embala, contraditória e inteligentemente, a personagem anticonvencional e polêmica, que, mesmo hoje, ainda causaria desconforto aos moralistas.
Para além da sexualidade (exibida no filme com naturalidade e honestidade e não para satisfazer o deleite masculino), as questões de gênero são tratadas com sensibilidade e sintonizadas com os estudos segundo os quais gênero é uma construção social, um “dispositivo de poder” das sociedades modernas – na linguagem foucaultiana – inserido em sistemas de unidade e regulação social e que assume múltiplas formas de expressão.
Sobre esse tema, há duas cenas que se destacam pela relevância para a construção de uma nova sensibilidade lésbica e transexual no cinema. A primeira, retrata Colette e Missyem uma performance teatral, onde, após terminarem com um beijo na boca, são vaiadas e insultadas pela plateia. A cena ensina o espectador que se comportar da mesma forma não só é coisa de gente atrasada e mal-educada, mas também ofende, aborrece, insulta. A cena é um pequeno exercício de alteridade. Pequeno, mas eficiente. Como nos ensina o crítico de cinema francês Alain Bergala, pelo cinema, é possível se colocar no lugar dos outros, sentir junto suas dores e alegrias e, com isso, se tornar mais humano. A origem de todo preconceito é a desumanização do outro.
A segunda cena, diz respeito à transgeneridade. A condessa desabafa com a amante sobre jamais ter conseguido aceitar uma identidade feminina, preferindo se vestir e se comportar como os homens. Novamente, temos um exercício de alteridade, onde o espectador tem a oportunidade de ouvir as razões pelas quais uma pessoa pode não aceitar as determinações de gênero socialmente impostas. O autor não se contenta em elencar uma personagem transexual e outra bissexual, também faz questão de discutir, ainda que brevemente, temas relacionados aos estudos de gênero e, sobretudo, contar histórias de pessoas que se tornaram mais felizes pela realização de seu próprio desejo e sintonizadas com uma identidade de gênero própria.
Se Colette não vai ao cinema para reinterpretar a linguagem sensual e sensorial de seus romances, vai, certamente, para assumir uma relevância política em defesa da causa das mulheres e das pessoas LGBTQs, algo digno de reverência, especialmente no mundo em que estamos vivendo, onde a autodeterminação feminina, o direito à diversidade e o respeito às diferenças têm sofrido perdas de difícil reparação.
Luciana Fernandes Dias
Professora de História
Especialista em Gênero e Diversidade Sexual na Escola e mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
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