A ‘brasileira’ que revolucionou a agronomia

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Alemã que escolheu o Brasil como pátria, Johanna Döbereiner, nascida há 100 anos, inovou o cultivo agrícola com o uso de bactérias fixadoras de nitrogênio no solo

CRÉDITO: FOTOS DIVULGAÇÃO

Em 2024, comemoramos o centenário de nascimento de uma incrível cientista brasileira, tão influente e importante que seus trabalhos moldaram a agroindústria no Brasil e nos colocaram entre as nações mais produtivas do mundo. Seu nome é Johanna Liesbeth Kubelka Döbereiner. Mesmo com a difícil pronúncia, esse nome tem se tornado cada vez mais conhecido entre não-cientistas, uma verdadeira façanha, reservada àquelas pessoas que realmente se destacam na ciência!

Dentre todos os cientistas brasileiros, Johanna é a sétima mais citada em artigos científicos em todos os tempos, e a mais mencionada entre as mulheres. 

Johanna não nasceu no Brasil, mas sim na antiga república da Tchecoslováquia, em 28 de novembro de 1924, em uma cidade localizada nos Sudetos, Aussig, uma região de grande influência alemã. Ela teve uma juventude muito difícil – quando tinha apenas 14 anos, a região onde morava foi invadida e anexada pela Alemanha nazista –, vivendo na pele os horrores da guerra. 

Johanna teve uma juventude muito difícil – quando tinha apenas 14 anos, a região onde morava foi invadida e anexada pela Alemanha nazista –, vivendo na pele os horrores da guerra.

Seus pais tinham origem alemã, mas não apoiavam o regime nazista, e, inclusive, protegeram e auxiliaram cidadãos judeus a escapar da perseguição, o que acabou levando seu pai, Paul Kubelka (1900-1954), à prisão. 

Com o fim da guerra, em 1945, a região foi devolvida à Tchecoslováquia, mas, infelizmente, as consequências da guerra continuaram a atormentar a vida familiar. O governo tchecoslovaco passou a perseguir cidadãos de origem alemã, e sua mãe, Margarethe Kubelka, foi aprisionada, morrendo em um campo de concentração naquele mesmo ano. 

Seu pai conseguiu escapar, junto com seu irmão mais novo, para a Alemanha Oriental, mas acabou se separando de Johanna, que ficou junto de seus avós, onde trabalhava em uma fazenda para se sustentar. 

Johanna começou seu curso universitário em 1947, na Universidade de Munique, Alemanha. Talvez influenciada pela vida na fazenda, decidiu estudar ciências agrárias. Formou-se em 1950, com um trabalho de conclusão de curso sobre o assunto que viria a marcar sua carreira: bactérias fixadoras de nitrogênio e sua associação com plantas.

Talvez influenciada pela vida na fazenda, decidiu cursar ciências agrárias. Formou-se em 1950, com um trabalho de conclusão de curso sobre o assunto que viria a marcar sua carreira: bactérias fixadoras de nitrogênio e sua associação com plantas

O papel do nitrogênio

O nitrogênio (N) é o nutriente mineral essencial para o crescimento de plantas. Esse elemento está presente em moléculas, como o DNA e RNA, aminoácidos e proteínas, ureia, aminoaçúcares, entre muitas outras. Sua disponibilidade (ou indisponibilidade!) limita o crescimento e o desenvolvimento das plantas. 

Apesar de representar 80% da nossa atmosfera, o nitrogênio do ar não está diretamente disponível para o mundo vegetal. Felizmente, as plantas evoluíram desenvolvendo diferentes estratégias para capturar e utilizar o nitrogênio do ambiente. E, como as plantas são organismos sésseis (fixos a um local e que não se podem deslocar), também conseguem se adaptar às mudanças na disponibilidade de nitrogênio nos solos. 

As plantas têm mecanismos para adquirir nitrogênio inorgânico do solo, como nitratos, nitritos e amônia, assim como nitrogênio orgânico, presente em aminoácidos, proteínas, ácidos nucleicos e ureia. O nitrogênio encontrado nessas formas é facilmente utilizado pela maioria das plantas. Mas a disponibilidade desses compostos no solo é limitada, e solos pobres nessas fontes de nitrogênio precisam ser adubados com fertilizantes nitrogenados. 

Estima-se que 120 milhões de toneladas de fertilizantes nitrogenados são utilizados no mundo todo ano, gerando um custo financeiro e ecológico muito alto, uma vez que sua produção contamina nosso planeta. 

Por outro lado, a atmosfera é muito rica na forma gasosa desse elemento, o nitrogênio molecular de fórmula N2. Ironicamente, essa forma do nitrogênio não pode ser utilizada pelas plantas. Elas “solucionaram” o problema da captura de N2 da atmosfera para suprir sua falta no solo, utilizando um mecanismo comum na natureza chamado simbiose. 

A simbiose acontece quando duas ou mais espécies de organismos vivem juntas em uma união íntima que, em geral, beneficia a sobrevivência de todas as espécies envolvidas. As plantas se uniram a certos tipos de bactérias que têm a capacidade de capturar nitrogênio do ar e transformá-lo em uma molécula que a planta possa utilizar. Em troca, as bactérias recebem os açúcares produzidos pela planta.

Bactérias fixadoras de nitrogênio

Essas bactérias vivem nas raízes das plantas e são chamadas de bactérias fixadoras de nitrogênio. É graças a elas que algumas plantas obtêm seu nitrogênio do ar em vez do solo. Foi exatamente essa simbiose entre plantas e bactérias fixadoras de nitrogênio que despertou a curiosidade científica de Johanna. 

No mesmo ano que obteve seu diploma universitário, Johanna casou-se com o médico veterinário Jürgen Döbereiner. Ainda em 1950, o pai de Johanna convidou o casal para ir morar no Brasil, onde ele já vivia com seu filho mais novo. Paul Kubelka era um físico-químico de prestígio e tinha sido convidado, em 1946, pelo governo brasileiro para desenvolver sua pesquisa aqui. 

Os recém-casados e recém-formados, Johanna e Jürgen, pegaram seus diplomas e, cheios de esperança, decidiram vir para o Brasil.

Aqui, Johanna conseguiu seu primeiro emprego no Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas do Ministério da Agricultura (SNPA), instituição que deu origem à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Álvaro Fagundes, diretor da SNPA, tinha uma bolsa para contratar um pesquisador estrangeiro, e Johanna foi se encontrar com ele determinada a conseguir o benefício. 

Entretanto, sua formação acadêmica havia sido prejudicada pelo período pós-guerra na Europa, e Fagundes tinha dúvidas em relação ao seu conhecimento prático. Foi preciso muita persistência, mas ela conseguiu a bolsa. 

Anos mais tarde, ela mesma disse em uma entrevista: “Eu não sabia nada, nunca tinha trabalhado em laboratório, e ele, com uma paciência incrível, me ajudou. Mas foi preciso mais de um ano para eu aprender o bê-á-bá em microbiologia”.

Aprendeu, e como! Na década que se seguiu, ela continuou desenvolvendo suas pesquisas sobre a interação entre plantas e bactérias fixadoras de nitrogênio. Inicialmente, seus trabalhos envolviam as plantas gramíneas, como cana-de-açúcar, arroz, milho, sorgo etc. Na década de 1950, ela descobriu novas espécies de bactérias que faziam a fixação de nitrogênio em gramíneas (principalmente, a cana-de-açúcar) em solos ácidos, um tipo muito comum no país. 

Johanna gostava de contar uma história sobre sua inspiração para esse trabalho com bactérias fixadoras de nitrogênio em gramíneas. Ela dizia que adorava tirar uma soneca na rede da sua varanda depois do almoço e, nesses momentos, aproveitava para olhar a natureza e a grama verde do seu jardim. Isso a fez pensar que seu gramado nunca havia recebido fertilizante nitrogenado, mas estava sempre verde viçoso quando chovia.

Soja brasileira

Johanna recebeu uma oportunidade única de mostrar a importância de sua pesquisa no início da década de 1960. Foi convidada a participar da Comissão Nacional da Soja, um grupo de trabalho do governo brasileiro que pretendia aumentar a produtividade do cultivo da leguminosa, planta com enorme potencial econômico. 

Nessa comissão, ela defendeu seus resultados com bactérias fixadoras de nitrogênio e se contrapôs à maioria do grupo, que defendia o uso de fertilizantes nitrogenados. Apesar da ferrenha oposição, as ideias de Johanna foram adotadas, e o uso de bactérias fixadoras de nitrogênio tem sido amplamente disseminado no Brasil. Graças a Johanna e suas bactérias, a soja brasileira viu sua produtividade disparar a um custo muito mais baixo, em comparação com cultivos que usam fertilizantes nitrogenados.

Graças a Johanna e suas bactérias, a soja brasileira viu sua produtividade disparar a um custo muito mais baixo, em comparação com cultivos que usam fertilizantes nitrogenados

Johanna foi uma verdadeira expoente da ciência do Brasil, um país que ela amava e que desde que chegou aqui, sempre o declarou como sua verdadeira pátria, até que, em 1956, se naturalizou brasileira. A pesquisadora trabalhou na Embrapa, em Seropédica (RJ) até o final de sua produtiva vida científica. Recebeu inúmeros prêmios científicos, demasiados para serem listados aqui. Seu verdadeiro legado está na memória e nas inquestionáveis contribuições que deixou no campo da agronomia.

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