Por que discutir racismo em aulas de biologia?

Experiência multidisciplinar une história e genética para criar um debate mais rico, crítico e amplo sobre o tema.

 

Em 2003, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)foi alterada, tornando obrigatório o estudo de história e cultura afro-brasileiras nas escolas públicas do país. Essa modificação foi fruto de muito empenho por parte do movimento negro, constituindo-se uma relevante conquista no combate à discriminação racial no país.

No entanto, o entendimento da comunidade escolar ficou preso à ideia de que a temática estaria restrita às aulas de história. Tal visão ignora tanto a gravidade do racismo em nosso país quanto o potencial multidisciplinar e transversal de abordagens em sala de aula. Dentre as várias possibilidades de trabalho, há na biologia uma excelente oportunidade para promover a aprendizagem de conteúdos de genética e evolução humanas.

Mas o que as aulas de biologia têm a ver com o debate sobre racismo?

A desconstrução do conceito de raças biológicas em humanos desnaturaliza as desigualdades entre brancos e negros, abrindo espaço para a percepção das origens históricas dessa realidade. Estatísticas mostram que os negros são os que mais sofrem com problemas como violência e precariedade das condições de vida.  Além disso, as médias salariais são mais baixas, e o acesso a bens e serviços é cerceado de várias formas.

 

Afinal, existem raças humanas?

As diferenças fenotípicas entre as supostas raças são apenas superficiais. Dados mostraram que o número de genes envolvidos na determinação da cor da pele, por exemplo, é muito pequeno diante do tamanho de nosso genoma.

O conceito de raça biológica equivale ao termo subespécie, e sua definição não estabelece limites claros a respeito do quanto de variação precisa haver entre populações para que sejam consideradas raças diferentes. Ainda assim, levando em conta toda a fragilidade do termo, presume-se que deva existir o acúmulo de considerável grau de diferenciação genética entre populações para que sejam consideradas raças diferentes, o que não ocorre na espécie humana.

Nos anos 1970, o biólogo evolucionista norte-americano Richard Lewontin demonstrou que cerca de 85% de toda a variabilidade genética de nossa espécie está dentro de grupos considerados como da mesma ‘raça’, enquanto apenas 15% se referem a diferenças entre esses grupos. As diferenças fenotípicas (associadas a características aparentes) entre as supostas raças são apenas superficiais, e isso ficou ainda mais claro quando foi concluído o Projeto Genoma Humano, em 2003. Os dados mostraram que o número de genes envolvidos na determinação da cor da pele, por exemplo, é muito pequeno diante do tamanho de nosso genoma (algo em torno de cinco a seis genes, em um universo de cerca de 25 mil!).

Apesar de não ser novidade, grande parte da população desconhece esses fatos. E é aí que entram as aulas de biologia.

 

Como abordar o assunto nas aulas?

As possibilidades são muitas, podendo envolver a aplicação de conhecimentos de genética quantitativa, biodiversidade, genética molecular, evolução, genética de populações etc. A contextualização a partir da temática do racismo pode contribuir para a valorização dos direitos humanos e da diversidade. Aliás, vários documentos oficiais preconizam tais princípios, como a LDB e a Base Nacional Comum Curricular.

O enfoque puramente biológico sobre o assunto poderia resultar na invalidação como um todo do conceito de raça, levando os alunos a ignorarem sua existência enquanto construção social. A ideia é que eles percebam que, no âmbito das relações sociais, o termo faz sentido, devido ao fato de nossa colonização ter se apoiado no uso de mão de obra negra escravizada. Por causa das características de nosso processo histórico, herdamos uma brutal desigualdade nas condições de vida entre negros e brancos.

 

Vamos a um exemplo prático?

Em nossa abordagem,desenvolvida com o apoio (cód.001) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), propusemos a realização, em uma turma de 3º ano do ensino médio, de uma sequência didática construída sob os princípios da pesquisa-ação. Iniciamos com uma sondagem junto aos alunos sobre suas percepções acerca do tema e, a partir desses dados, elaboramos as etapas de sensibilização, tratamento teórico e exposição de trabalhos.

Durante a sensibilização, visamos conscientizá-los sobre a questão: foi exibido o filme Escritores da liberdade(2007) para posterior discussão com os estudantes. A obra aborda tensões raciais em uma escola americana e oferece inúmeras oportunidades de exploração do tema. Outro recurso usado foi a realização da dinâmica chamada de ‘jogo do privilégio’, em que os jovens disputam uma espécie de ‘corrida’. Todos partem de um mesmo ponto e avançam ou recuam pelo solo demarcado com faixas de acordo com as respostas a perguntas previamente definidas, como:‘Você precisa trabalhar para ajudar no sustento da família?’; entre outras. No caso dessa pergunta, quem respondeu ‘não’ teria mais ‘privilégios’ e pode avançar. Encerramos essa etapa com a leitura pelos alunos de depoimentos de vítimas de racismo, selecionados na internet.

O tratamento teórico necessário para subsidiar as discussões foi realizado por meio da apresentação de seminários em grupo. Entre os temas para escolha dos alunos estavam: biodiversidade, variabilidade genética e adaptação, determinação da cor da pele em humanos etc. Após o término dos seminários, os alunos tiveram um prazo para produzir formas de apresentação menos formais dos temas para a feira multidisciplinar da escola, em que toda a comunidade escolar poderia ser atingida pelas discussões ocorridas ao longo do ano letivo.

Apesar de o estudo ainda estar na fase de interpretação dos dados coletados, as observações feitas ao longo do trabalho indicam que a contextualização do tema racismo para o ensino de genética oferece grande potencial para tornar o conteúdo das aulas de biologia mais crítico e investigativo. Muitas possibilidades se abrem a partir dessa perspectiva, que transita na interseção entre biologia e história. A criatividade do educador oferece o dinamismo necessário para que cada um construa uma sequência adequada à sua realidade. Assim, as aulas de genética podem ir além das ervilhas de Mendel.

Michele Gravina, Michele Munk

Mestrado Profissional em Ensino de Biologia em Rede Nacional (ProfBio)

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