Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), as 10 principais causas de morte em humanos são doenças cardíacas, derrames, doenças pulmonárias crônicas obstrutivas, infecções do trato respiratório inferior, doença de Alzheimer/outras demências, câncer de traqueia, brônquios e pulmão, diabetes mellitus, acidentes de trânsito, diarreia e tuberculose. A maior parte dos agravos atualmente mais letais, portanto, é de doenças crônicas não transmissíveis. Esses dados se opõem fortemente aos índices observados no início do século 20, quando pneumonia e influenza, seguidas de tuberculose, infecções gastrintestinais, doenças cardíacas, doenças cerebrovasculares, nefropatias, acidentes, câncer, senilidade e difteria eram as principais causas de morte.
É, portanto, claríssimo o quadro de inversão: as doenças infecciosas, principais problemas de saúde no início do século 20, ocupam hoje papel secundário como causadoras de mortes em humanos. São muitos os fatores relacionados a essa inversão, dentre os quais se destacam os avanços na terapia antimicrobiana, o desenvolvimento de vacinas e a melhoria das condições sanitárias em várias partes do globo.
O cenário resumido acima induz à conclusão precipitada de que as doenças infecciosas não mais representam problemas prioritários. Episódios recentes, discutidos a seguir, demonstram com clareza que essa é uma conclusão minimalista. É importante, entretanto, questionar: dentro da perspectiva de investimentos em pesquisa e/ou saúde pública, é recomendável ou mesmo necessário priorizar doenças crônicas não transmissíveis sobre doenças infecciosas? Não há resposta simples para essa pergunta – se é que há alguma resposta.
A emergência de novos patógenos, sejam eles virais, fúngicos, bacterianos ou parasitas, carrega consigo um elemento comum: a inexistência de vacinas e de alternativas terapêuticas. Essas condições afetam negativamente a saúde de populações, além de trazerem prejuízos econômicos e sobrecarga nos sistemas de atendimento hospitalar.
Em 2009, foi pela primeira vez reportada no Japão a existência do fungo Candida auris.. O fungo foi inicialmente isolado da orelha de um paciente (auris = ouvido em latim). Em pacientes imunocomprometidos hospitalizados, o fungo pode atingir a circulação sanguínea, produzindo índices de mortalidade que variam de 28% a 78% dos pacientes, dependendo do país. Para fins de comparação, a mortalidade causada pelo vírus Ebola vai de 25% a 90%.
Desde sua descrição inicial, C. auris chegou a 39 países distribuídos entre todos os continentes, exceto a Antártida. O fungo se destaca por ser altamente resistente a medicamentos antifúngicos, e alguns isolados são resistentes a todos os antifúngicos disponíveis para uso em humanos. Entidades de saúde pública, comunidade científica e sociedade em geral, claramente, não estavam preparados para a emergência de um fungo desconhecido com alto poder de letalidade e níveis expressivos de resistência a medicamentos.
O caso acima ilustra o impacto negativo de doenças infecciosas emergentes sobre a população global. Situações de alcance muito mais amplo e de impacto muito mais perceptível para populações, governos e comunidade científica se materializaram muito recentemente, como as emergências sanitárias causadas pelos vírus Zika e Ebola, a reemergência da febre amarela, os constantes episódios de dengue e a ainda vigente pandemia causada pelo Covid-19 (coronavírus). Com exceção da febre amarela, em nenhum dos casos havia, à época da emergência, ferramenta de prevenção (vacinas) ou de tratamento (antivirais).
Apesar de evidenciarem grande vulnerabilidade, episódios como os relatados acima demonstraram, de forma consistente, que a comunidade científica responde a situações de emergência com grande eficiência. Na esfera acadêmica, isso se verifica com clareza. A partir do surto inicial de infecções por C. auris, foram produzidas cerca de 400 publicações científicas na área. Em 2020, pesquisadores produziram em apenas três meses mais de 800 publicações sobre o Covid-19, vírus causador da pandemia anunciada em dezembro de 2019.
Mais do que simplesmente números, esses dados traduzem o aumento de nossa capacidade de compreensão sobre as características de cada patógeno emergente, permitindo o desenho de terapias e vacinas. Não por acaso, as emergências causadas por Zika e Ebola induziram com enorme rapidez a produção de protótipos de vacinas contra cada um desses vírus patogênicos. Notavelmente, poucos meses após o início da pandemia, candidatos vacinais contra o Covid-19 foram desenvolvidos e aprovados para testes em humanos.
A emergência de C. auris como agente causador de doenças em humanos está ligada ao processo de aquecimento global. É importante apontar que, nove anos antes do primeiro surto de doença causada por C. auris, já era clara a percepção de que o aumento da temperatura do planeta poderia selecionar na natureza fungos que, antes inofensivos, teriam potencial patogênico.
É certamente dificílimo prever a emergência de doenças virais. Entretanto, a comunidade científica permanece em vigília constante. Por exemplo, em janeiro de 2018 – cerca de dois anos antes da pandemia causada pelo Covid-19 –, autoridades em saúde e pesquisa, políticos e representantes do setor privado de várias regiões do globo se reuniram para propor o Projeto Viroma Global. Parceria inovadora para desenvolver um atlas global com a maioria dos vírus potencialmente nocivos para humanos, o projeto apresentou como objetivo construir um banco de dados sobre os mais diversos vírus em seus cenários ecológicos, aumentando assim a chance de desenvolvimento de ferramentas de prevenção de viroses emergentes.
Naturalmente, iniciativas como essa requerem recursos financeiros expressivos, e costumam ser rejeitadas por políticos e autoridades de gestão pública, o que dificulta sua implementação.
Na área de doenças bacterianas, a OMS estima que a resistência aos antibióticos é uma das maiores ameaças à saúde e segurança alimentar e, consequentemente, ao desenvolvimento global. A resistência aos antibióticos está atingindo níveis muito altos em todas as partes do mundo e estima-se que, num futuro próximo, serão drasticamente reduzidas as opções terapêuticas.
De fato, novos mecanismos de resistência estão surgindo e se espalhando globalmente, ameaçando nossa capacidade de tratar doenças infecciosas comuns. Infecções como pneumonia, tuberculose, gonorreia e doenças transmitidas por alimentos vêm sendo tratadas cada vez com menos eficiência, uma vez que os antibióticos se tornam menos eficazes em função do aumento da resistência antimicrobiana.
Os fatos acima demonstram que não falta à comunidade científica capacidade de antever o potencial danoso de emergências sanitárias. Certamente, é preciso reconhecer que é muito complexo o processo de tradução de conhecimento em benefícios para a saúde humana, mas é igualmente importante apontar que problemas de grandes proporções podem ser evitados ou ao menos minimizados ao implantar programas científicos focados na prevenção de doenças infecciosas emergentes. Cabe às autoridades gestoras em saúde e pesquisa investir na geração de conhecimento científico e sua posterior aplicação em políticas públicas de proteção à saúde da população.
A transição epidemiológica entre doenças infecciosas e crônicas não transmissíveis aqui mencionada tem impacto notável sobre a saúde de populações. Entretanto, é impossível atribuir peso à importância de cada uma dessas categorias de doenças.
De fato, doenças crônicas não transmissíveis e microrganismos estão diretamente conectados em vários agravos. Por exemplo, um dos maiores reservatórios conhecidos de microrganismos é o trato gastrointestinal, onde os micróbios que normalmente habitam essa região anatômica (microbiota intestinal) contribuem com o funcionamento normal do organismo. Perturbações na composição e função da microbiota intestinal foram associadas a doenças crônicas que variam de condições inflamatórias e metabólicas gastrointestinais a doenças neurológicas, cardiovasculares e respiratórias.
A título de ilustração, as doenças fúngicas disseminadas já têm opções terapêuticas definidas há mais de 50 anos. Entretanto, uma combinação entre falta de investimentos para pesquisa, baixo reconhecimento de sua relevância por autoridades em pesquisa e saúde, dificuldades intrínsecas à biologia de fungos e baixo número de cientistas na área gerou grande atraso em geração de conhecimento e desenvolvimento tecnológico.
Apesar de as micoses de maior gravidade serem muito menos frequentes que, por exemplo, doenças virais e bacterianas, esse quadro impacta fortemente programas de saúde pública em múltiplos aspectos, inclusive econômicos. No Brasil, o custo do tratamento de micoses disseminadas pode ultrapassar 400 mil reais por paciente. Considerando as estimativas de que existam 3,8 milhões de pacientes no país afetados por micoses graves, conclui-se que os recursos para que esses pacientes sejam adequadamente tratados não estão disponíveis no sistema público.
O exemplo das micoses disseminadas apenas ilustra que, apesar da inegável importância médica das doenças crônicas não transmissíveis, há muito ainda a conquistar na área de doenças infecciosas, ainda que num cenário de óbvia transição epidemiológica. A aplicação do mesmo raciocínio para doenças infecciosas que atingem um número volumoso de indivíduos (dengue, Covid-19, entre outras) consolida essa percepção com muita clareza.
Não há, portanto, solução simples: são inúmeros os desafios. Mesmo em tempos de crise, ações de vigilância contínua, monitoramento de riscos e, fundamentalmente, investimento em ciência e tecnologia, não podem ser negligenciadas em nenhum cenário.
Marcio L. Rodrigues
Instituto Carlos Chagas, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Curitiba)
Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, Universidade Federal do Rio de Janeiro
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