Parte do projeto ‘94 elementos’, série de vídeos sobre os elementos da tabela periódica, o documentário Lithium – Manhattan, Manic City, de David Alvarado e Jason Sussberg, começa com uma explicação: “O lítio é prescrito para tratar transtorno bipolar. A droga psiquiátrica, carbonato de lítio, age como estabilizador do humor para pacientes que sofrem de depressões maníacas, um ciclo de picos de euforia seguidos de abismos depressivos severos.”
Então, estamos resolvidos. A psicose maníaco-depressiva (antiga PMD), hoje conhecida como transtorno afetivo bipolar ou transtorno bipolar do humor, é uma doença psiquiátrica e essa doença tem tratamento: o carbonato de lítio. Ponto final.
Mas por que continuamos falando sobre isso?Porque não é tão simples assim.
Kay Jamison, uma das maiores pesquisadoras em transtorno bipolar, ela mesma portadora da doença, escreve em seu livro Uma mente inquieta (São Paulo, ed. Martins Fontes, 1996): “Por que foi preciso passar por outros episódios de mania, seguidos de longas depressões suicidas, antes que eu começasse a tomar lítio de uma forma sensata em termos médicos? Parte da minha relutância, sem dúvida, tinha origem em uma negação fundamental de que o que eu tinha era uma doença de verdade. Trata-se de uma reação comum que surge, de uma forma bastante contrária à intuição, na esteira de episódios iniciais da doença maníaco-depressiva. As oscilações de ânimo são uma parte tão essencial da substância da vida, da nossa noção de identidade, que mesmo extremos psicóticos no humor e no comportamento podem de algum modo ser vistos como reações temporárias, até mesmo compreensíveis, a que a vida nos apresenta. No meu caso, sofri uma horrível sensação de perda pelo que eu havia sido e por onde eu havia estado. Foi difícil renunciar aos altos voos da mente e da emoção, mesmo se as depressões que inevitavelmente os acompanhavam quase me custassem a vida” (pp.108-109).
O interessante em Lithium é que ele aborda muito bem esses aspectos do transtorno bipolar. Centrado na experiência do psiquiatra nova-iorquino Ronald R. Fieve, também ele um pesquisador da bipolaridade, o documentário apresenta o relato de três portadores do transtorno. A primeira, uma mulher de meia idade, diz com toda a clareza:“A mania foi meu primeiro amor”. E sua resistência ao lítio decorre do fato de que “o lítio corta até mesmo a menor mania”. Ela acrescenta que não gostaria de chamar o transtorno bipolar de humor de doença mental, pois, para ela, trata-se de uma dádiva disfarçada – o poeta britânico Lord Byron (1788-1824), o escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961), o pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890), a cantora e compositora britânica Amy Winehouse (1983-2011), todos seriam portadores de transtorno bipolar e, na verdade, suas veias criativas decorreriam da possibilidade de se aproximarem de suas emoções de uma forma tão extrema.
Dr. Fieve faz uma observação muito interessante a esse respeito: “Nem todos os bipolares são criativos e nem todas as pessoas criativas são bipolares, mas quando você tem a combinação dos dois, você tem uma pessoa incrível nas suas mãos.”
O segundo entrevistado é um investidor da bolsa de valores de Nova Iorque. Ele também fala de sua dificuldade em seguir o tratamento:“Para mim, é difícil tomar lítio de forma consistente; quando se está na fase maníaca, não há por que se achar que vai cair…”
Por fim, temos uma mulher negra, jovem, moradora do Harlem (bairro de Manhattan, em Nova Iorque), mãe de um filho ainda pequeno, separada do marido, com quem foi casada por 14 anos. Ela diz: “Ele tentou, mais foi demais para ele. Ele me abandonou. Sempre soube que havia algo errado, mas só recentemente soube que eu era bipolar. Não tenho medo do lítio. Ele é muito bem-vindo.Tudo o que eu realmente quero e preciso é do meu filho e do lítio”.
O que o documentário mostra muito bem é que, apesar de o carbonato de lítio ser, na maioria dos casos, uma medicação eficaz para o tratamento do transtorno bipolar, muitos se recusam a usá-lo ou o fazem de forma irregular. Isso porque têm dificuldade de aceitar o diagnóstico e seguir o tratamento que os levaria a “perder parte de sua personalidade e criatividade”, bem como abrir mão da sensação maravilhosa que a mania produz, apesar do tenebroso mundo da depressão que se segue à euforia.
No epílogo do livro Uma mente inquieta, Kay Jamison retoma essa questão: “Muitas vezes me perguntei se optaria por ter a doença maníaco-depressiva, caso pudesse escolher. Se eu não dispusesse do lítio, ou se ele não funcionasse no meu caso, a resposta seria um simples ‘não’– e seria uma resposta impregnada de horror. No entanto, o lítio funciona no meu caso; e, por isso, suponho que possa me permitir essa pergunta. Por estranho que pareça, creio que optaria por ter a doença. É complicado. A depressão é apavorante demais e não cabe em palavras, sons ou imagens. Eu não gostaria de passar por uma depressão prolongada. (…) E então, por que eu iria querer ter alguma coisa a ver com essa doença? Porque acredito sinceramente que, em consequência dela, senti mais coisas e com maior profundidade; tive mais experiências, mais intensas; amei mais e fui amada; ri mais vezes por ter chorado mais vezes; apreciei mais as primaveras, apesar de todos os inversos. (…)Conheci os limites da minha mente e do meu coração, e percebi como os dois são frágeis e como, em última análise,são incognoscíveis”(p.261).
Portanto, para Jamison, o fato de o lítio ser um medicamento que funciona para ela lhe permite dizer que a doença bipolar, apesar de todo o horror que ela provoca, possibilita experiências extremas, que, no limite, nos fazem aprender sobre afeto, lealdade e sobre ir até o fim.“Creio que minha doença me fez testar os limites da minha mente (que, embora deficiente, está firme), bem como os limites da minha criação, família, formação e dos meus amigos” (p.261).
Voltando ao documentário, o que o torna positivo, a meu ver, é que ele apresenta, em sete minutos, várias facetas do transtorno bipolar do humor, sua complexidade e seus desafios. Sim, temos o lítio, e isso é uma maravilha. Mas, como apontado no início deste texto, nem sempre é tão simples assim.
Maria Tavares Cavalcanti
Instituto de Psiquiatria,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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