Gripe aviária e os riscos de uma nova pandemia

Jornalista, especial para o ICH

Presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, Helena Lage fala que o aumento de casos do vírus altamente patogênico da gripe é preocupante e reforça importância de vigilância genômica

Um caso recente de gripe aviária em um homem no estado do Missouri, nos Estados Unidos, acendeu um novo alerta de saúde. Apesar de outros episódios já terem sido notificados em humanos, essa foi a primeira pessoa no país identificada com a doença que não teve exposição direta conhecida a animais infectados. Dois contatos diretos do paciente apresentaram sintomas de influenza, mas testaram negativo para o vírus. Não há evidência epidemiológica que indique transmissão entre as pessoas até o momento, embora haja a preocupação de que uma maior circulação do vírus facilite mutações e leve à transmissão direta entre humanos num mundo que ainda tem a lembrança da pandemia de covid-19.

“Por isso a vigilância genômica é tão importante. Não podemos excluir uma possível pandemia. A situação atual é preocupante e exige cuidados”, diz a professora da Universidade de São Paulo (USP) Helena Lage, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Nesta entrevista, a médica-veterinária comenta a evolução do vírus e as medidas urgentes necessárias, num contexto de degradação ambiental que nos torna cada vez mais suscetíveis a pandemias.

CIÊNCIA HOJE: A gripe aviária não é uma novidade para a ciência. No entanto, tem despertado maior preocupação. Por quê?  

HELENA LAGE: O vírus da influenza aviária mais comentado na atualidade, o H5N1, emergiu em 1996, já há quase 30 anos. Tinha sido erradicado por um período, reemergiu, e depois de 2005, o vírus  que inicialmente era restrito ao sudeste da Ásia começou a se disseminar para outras partes do mundo com as aves silvestres, que são consideradas reservatórios naturais dos vírus de influenza. O vírus evoluiu ao longo desses anos todos, com a migração das aves silvestres infectadas. Em 2020, uma nova variante do vírus emergiu na Europa, e esse vírus tem causado o aumento do número de casos e a disseminação para todos os continentes, incluindo a Antártica. Mas além de estar presente em continentes em que ainda não havia chegado, o que preocupa nesse vírus é que ele está sendo disseminado por um espectro enorme de aves silvestres. Já são mais de 300 espécies infectadas já documentadas e em mais de 60 espécies de mamíferos.  

O que preocupa nesse vírus é que ele está sendo disseminado por um espectro enorme de aves silvestres. Já são mais de 300 espécies infectadas já documentadas e em mais de 60 espécies de mamíferos

CH: Alguns países, como Estados Unidos, Austrália, Peru, Chile e Vietnã, relataram casos de gripe aviária em humanos. Em abril, no México, foi relatada uma morte pela doença. Quando o potencial epidemiológico da doença mudou e por qual razão? 

HL: Os vírus de influenza são identificados com as hemaglutininas, que são as proteínas de superfície do envelope viral. No caso do México, embora o vírus também seja um H5, se trata de um outro vírus, o H5N2, que circula por lá há anos em aves domésticas. Em relação ao H5N1, a mudança foi que houve um novo rearranjo do vírus, da hemaglutinina H5 com uma nova neuraminidase, e essa combinação criou um vírus mais estável. O vírus já circulava e encontrou uma grande parceria, muito estável, que está sendo disseminada e causando um aumento de números de casos em animais. Nos Estados Unidos, há um caso alarmante de descrição do vírus em vacas leiteiras. Quer dizer, são animais domésticos, em contato direto com trabalhadores e a população que consome produtos vindos desses animais, como o leite e seus derivados. Quando temos grande circulação de vírus em várias espécies de animais, as pessoas também ficam mais suscetíveis a casos. A boa notícia é que ainda não identificamos transmissão direta entre pessoas, e o processo de pasteurização se provou eficiente para inativar o vírus.

CH: A lembrança do que foi a pandemia da covid segue muito presente. A gripe aviária pode se transformar em uma nova pandemia? 

HL: Essa é a preocupação de toda a comunidade científica. Esse vírus tem tido mais oportunidades de causar infecções em mamíferos, e temos documentado um acúmulo de mutações que sugerem que ele tem conseguido se adaptar para se multiplicar em células de mamíferos de forma mais fácil, pois as exigências para a replicação dos vírus em células de aves e de mamíferos são diferentes. À medida que esse vírus vai acumulando essas alterações, permitindo que ele se multiplique melhor nos mamíferos, é preocupante. Aumenta a chance de um potencial epidêmico a partir da maior probabilidade de transmissão entre os mamíferos. A diferença com o Sars-CoV-2, que nunca tinha sido identificado na época, é que esse vírus já é conhecido da comunidade científica. Ele já vem sendo monitorado, e a Organização Mundial da Saúde (OMS) já tem indicadas sementes para eventuais vacinas pré-pandêmicas. Não há documentação de transmissão entre pessoas, que poderia levar a uma pandemia, mas existe uma epidemia em curso entre os animais, em diferentes partes do planeta. Além disso, a chance de agravamento para uma pessoa que não tem uma defesa para esse vírus novo do subtipo H5 seria maior, porque a população não possui anticorpos contra ele, ao contrário da influenza sazonal causada pelo H1N1, por exemplo. Não podemos excluir uma possível pandemia. A situação atual é preocupante e exige cuidados, como o monitoramento genômico dos casos.

CH: Como se dá a transmissão dessa gripe para os humanos? 

HL: As aves infectadas liberam alta carga viral no ambiente pelas vias oral e digestória. Uma pessoa em contato direto com elas pode se contaminar via respiratória, inalando as partículas virais, ou via oral, colocando na boca algum objeto contaminado com o vírus. No caso das vacas, esse cenário de contágio ainda não está muito claro. Estudos feitos nos Estados Unidos, inclusive com a participação de pesquisadores brasileiros, mostram que o vírus está sendo eliminado pelas vacas em alta quantidade no leite e em menores concentrações pela urina e pelo trato respiratório. Não se sabe bem ainda se os trabalhadores dessas fazendas se infectam pela manipulação do leite ou pela via respiratória.  

CH: Em termos de gravidade e letalidade de infecção, quais são as diferenças no caso de animais e de humanos em relação à gripe aviária? 

HL: Isso é muito variável. Algumas espécies de aves que são consideradas reservatórios do vírus não apresentam sinais clínicos, ou têm sinais clínicos leves, enquanto outras espécies são extremamente suscetíveis, com sinais respiratórios graves, sinais neurológicos e digestórios. O vírus se multiplica em todos os tecidos das aves, causando uma lesão muito grave e essas aves não conseguem sobreviver. Alguns mamíferos são mais suscetíveis, como felinos. No caso das vacas, muitas não apresentam nenhum sinal clínico, são assintomáticas, mas estão replicando o vírus. No caso de humanos, se pegarmos as ocorrências registradas pela OMS desde que o vírus reemergiu e começou a se disseminar, em 2005 até 2019, temos cerca de 861 casos e 53% deles foram a óbito. É uma taxa de letalidade muito alta. Porém, se isolamos essa onda atual desde 2020, os números são diferentes, com uma taxa de letalidade por volta de 15%. Não é desprezível, mas é muito menor do que quando o vírus reemergiu. A maioria das pessoas têm sintomas leves, como conjuntivite e sinais gripais. Os casos de pessoas com comorbidades prévias é que, geralmente, são relacionados aos óbitos. Ainda não temos tantos estudos que expliquem essa queda na taxa de letalidade. É fato que o vírus se tornou extremamente capaz de se multiplicar em aves, e ainda não é tão adaptado aos humanos. Também há uma maior vigilância hoje. Nos Estados Unidos, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) monitoram um grande número de pessoas. Então se surge um surto numa fazenda leiteira todos os trabalhadores são acompanhados.

CH: Quais são as recomendações no consumo da carne de animais infectados com gripe aviária?

HL: É importante dizer que, no Brasil, o vírus não foi identificado em aves comerciais. Até agora as identificações são em aves silvestres, e há três relatos em aves de subsistência que não são comercializadas. O vírus tem a característica de se multiplicar em tecidos, inclusive nos músculos, então na carne também. A  recomendação da OMS é que se você for a um país onde o vírus for endêmico não visite locais com aves. E o consumo de carne deve ser sempre de carne bem cozida, uma vez que o cozimento inativa o vírus, e não só ele, mas também outros patógenos que causam mal para a saúde.

É importante dizer que, no Brasil, o vírus não foi identificado em aves comerciais. Até agora as identificações são em aves silvestres, e há três relatos em aves de subsistência que não são comercializadas

CH: De que forma a experiência adquirida com a pandemia de covid pode fazer diferença diante de uma eventual nova pandemia? 

HL: O grande benefício da covid para a comunidade científica foi ter ensinado todos a trabalhar em redes colaborativas. E isso permanece. Temos várias iniciativas mundiais, e no Brasil, nas quais se viu a importância de haver uma colaboração na transparência de informação e na troca de protocolos. Foi o maior aprendizado da covid. As tecnologias de produção de vacinas também avançaram na pandemia e foram transferidas para os estudos de influenza também. Mas ainda dependemos muito da importação de insumos. Os países mais desenvolvidos concentram os recursos. Ainda temos o desafio de que todos entendam que um problema que surge num continente, numa região, não é só dela, é de todos. Estamos vendo isso com a monkeypox. E existe vacina. Por que não vacinar mais a população de maior risco?  

O grande benefício da covid para a comunidade científica foi ter ensinado todos a trabalhar em redes colaborativas. E isso permanece

CH: Qual é o cenário da gripe aviária no Brasil? Há casos registrados da doença em humanos no país? 

HL: Não existe nenhum relato de casos em humanos no Brasil. Existem diretrizes do Ministério da Saúde de recomendação de pessoas que devem ser testadas. Tivemos registrados pelo Ministério da Agricultura 166 focos de influenza aviária em animais, especialmente na costa do país, mas sem casos positivos identificados em pessoas. É difícil prever a chance de propagação de casos. Faltam dados sobre o Hemisfério Sul. Sabemos que no Hemisfério Norte, onde há muitos dados disponíveis sobre o vírus circulante, o período de pico é a partir de novembro. Por aqui, não sabemos. Pelos dados do ano passado, poderíamos começar a ter um número maior de casos agora aqui.

CH: O que existe de imunização para a gripe aviária no mundo e, em que medida, atenderia um eventual cenário de pandemia?  

HL: Como é um vírus que já preocupa há algum tempo, a OMS sistematizou um grupo de especialistas para avaliar possíveis vacinas para essa emergência. Eles acompanham as variações do vírus e testam laboratorialmente se as sementes indicadas para potenciais vacinas pré-pandêmicas ainda garantiriam a proteção contra os vírus circulantes no cenário atual. Esse grupo coleta dados de pesquisadores do mundo inteiro, inclusive nosso grupo participou desse compartilhamento porque existem poucos dados no Hemisfério Sul. No Brasil, o Instituto Butantan desenvolve esse trabalho e se prepara, como outros países, para produzir a semente e ter estoque de imunizante se necessário. Mas é difícil pensar em larga produção ainda sem ter ideia se esse vírus pode realmente causar uma nova pandemia. Tampouco há valores claros dessa produção. É um cálculo complexo. Há poucos meses, países da Europa e os Estados Unidos divulgaram que estavam começando a fazer estoques de vacinas pré-pandêmicas de emergência para usar especialmente em trabalhadores com contato direto com animais infectados.  

CH: Recentemente, a OMS atualizou a lista de patógenos com maior probabilidade de causar uma próxima pandemia. A gripe aviária está nela, mas há ainda outras dezenas de bactérias e vírus. Qual é a importância dessa lista? 

HL: A lista é feita por especialistas que avaliam os relatos científicos e os comportamentos e mudanças dos vírus e estabelecem os níveis de riscos. É extremamente importante que essas informações se disseminem para que a comunidade científica se prepare para uma possível emergência. A lista atual tirou alguns que estavam na lista anterior, mas colocou muitos outros que não estavam antes. Está bem maior. No caso da influenza, o H5 está lá, mas também o H1, o H10… Apareceram vírus até então não identificados em pessoas, o que aumenta o alerta de potenciais emergências não documentadas antes. 

Apareceram vírus até então não identificados em pessoas, o que aumenta o alerta de potenciais emergências não documentadas antes

CH: O mundo está mais suscetível a pandemias? Que fatores contribuem para isso? 

HL: Vários estudos mostram que o uso da terra e a degradação do ambiente expõem as pessoas de forma mais frequente a doenças antes restritas a animais que estavam em seus ambientes silvestres. À medida que os “desabitamos” esses animais procuram novos abrigos, e temos contato maior com eles, que são reservatórios de muitos patógenos. Cerca de 75% dos vírus emergentes têm seu reservatório em animais do ambiente silvestres. Esse é o alerta: ao destruir ecossistemas estamos mais sujeitos a encontrar esses patógenos. As mudanças climáticas são outro fator. Vimos isso com a epidemia de dengue. Praticamente não tivemos inverno e, com a extensão do período de calor, temos maior multiplicação dos vetores. Quanto mais hospedeiros os vírus encontrarem, mais chances têm de disseminação.

Cerca de 75% dos vírus emergentes têm seu reservatório em animais do ambiente silvestres. Esse é o alerta: ao destruir ecossistemas estamos mais sujeitos a encontrar esses patógenos. As mudanças climáticas são outro fator. Vimos isso com a epidemia de dengue

CH: Para além das ações de pesquisa e vigilância da comunidade científica e profissionais de saúde, que outras medidas de prevenção devem ser tomadas com urgência, seja para gripe aviária ou outra doença que desafie a ciência?  

HL: A principal é essa mudança da nossa relação com o uso da terra, para evitar a degradação do ambiente, diminuir o desmatamento, a degradação de rios e a probabilidade de encontro de novos patógenos. Também precisamos de mais programas e iniciativas de conhecimento da nossa biodiversidade, que nos ajudem a entender o que existe na natureza e quais seriam potenciais patógenos ainda não descobertos para conseguirmos nos preparar melhor. Outro ponto é a manutenção de recursos para as pesquisas, com investimento contínuo e valorização da carreira científica, não só nos momentos de desespero. E uma maior interface com a indústria brasileira, que ainda não tem capacidade de ter um programa a médio e longo prazo para investir e melhorar a pesquisa e o desenvolvimento nacionais.

CH: E que cuidados a população em geral pode tomar desde já diante de uma possível nova pandemia?

HL: Os trabalhadores rurais que têm contato com animais, não só com aves, devem ficar muito atentos ao aparecimento de sinais clínicos neles e também nos animais. Se identificarem qualquer mudança nos parâmetros de produção ou comportamento devem informar as autoridades veterinárias. Nos casos do vírus H5N1, ele é introduzido por aves silvestres, então também é importante proteger as criações da entrada desses animais que podem ser carreadores do vírus. Para a população em geral, a recomendação é não se aproximar de animais que pareçam doentes e notificar o serviço veterinário local. Os profissionais sabem como manusear esses animais e coletar amostras, e, se surgir qualquer sinal clínico, as autoridades de saúde devem ser notificadas. Para trabalhadores rurais que têm contato com animais, não só com aves, é importante que mantenham em dia a vacinação para influenza sazonal. As vacinas também seguem essenciais. Não vão proteger contra uma nova emergência, mas podem impedir uma possível coinfecção e rearranjos de vírus. O movimento de hesitação à vacina faz mal para todos nós e precisa ser combatido. É o conhecimento que deve ser disseminado, não o vírus.

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