Cada vez mais adaptado

Vice-diretor da Fiocruz Amazônia, Felipe Naveca alerta sobre as novas e perigosas variantes do SARS-CoV-2, como a linhagem brasileira P.1, destaca a importância da vigilância genômica durante a pandemia e faz um apelo por medidas que reduzam a circulação do novo coronavírus para evitar mais mortes.

“Esse é o maior desafio da minha carreira e de toda uma geração. Para quem trabalha com viroses emergentes como eu, é o momento de mostrar porque me envolvi tanto nessa área e dar a minha contribuição”, diz Felipe Naveca, vice-diretor de pesquisa e inovação da Fiocruz Amazônia (Instituto Leônidas e Maria Deane), ecoando as vozes de tantos cientistas mundo afora diante da covid-19. Mas o desafio do virologista, dedicado à vigilância genômica, que faz sequenciamento do vírus acompanhando sua evolução ao longo do tempo, é também pessoal: como tantos brasileiros, o pesquisador perdeu o pai para a doença, em maio passado. Tempos depois, sua avó, que sobrevivera à infecção meses antes, sucumbiu a um AVC, o que o faz pensar na necessidade de pesquisas sobre as consequências a longo prazo da covid-19.

Ciência Hoje: Em relação à pandemia, muitos afirmam que o Brasil se transformou em risco para o mundo todo. Você concorda? Isso está relacionado à variante P.1, identificada no Amazonas?

FELIPE NAVECA: Não tem como não concordar com essa afirmação porque temos aqui a detecção de muitas variantes. A P.1 é a mais importante porque mostrou uma série de mutações, entre as quais chamam a atenção as na spike, a proteína de superfície do vírus. Três dessas são na região RBD, domínio que se liga à célula, nas mesmas posições da variante B.1.351, primeiramente descrita na África do Sul. Essa característica nos saltou aos olhos como algo bem preocupante, o que se confirmou com a velocidade em que a P.1 passou a ser dominante. Só de novembro de 2020 testamos mais de 300 amostras no Amazonas e não existia a P.1. Em dezembro, passou a ser detectada em 35% das amostras testadas. Em janeiro, em 75%. Hoje, praticamente, só tem P.1 no Amazonas. Além disso, estudos da Fiocruz com amostras do Brasil inteiro identificaram outras linhagens: N.9, que está em 12 estados, e a N.10, no Maranhão e no Amapá. As quatro linhagens que mais chamaram a atenção recentemente no Brasil – P.1, P.2, N.9 e N.10 – surgiram de evoluções das linhagens ancestrais do vírus que mais circularam. Isso mostra que a circulação do vírus por muito tempo em nosso país deu a chance de surgirem essas novas variantes. Enquanto houver muitos casos, a possibilidade de surgirem outras é grande. Mas não é só o Brasil. Na Índia, com mais de 200 mil casos por dia, há imenso risco também. Sempre digo aos meus alunos: nunca subestime um vírus, ainda mais um vírus novo.


+ tempo: A circulação do vírus por muito tempo em nosso país deu a chance de surgirem essas novas variantes. Enquanto houver muitos casos, a possibilidade de surgirem outras é grande

CH: O que são as variantes do vírus?

FN: Tudo vem, basicamente, a partir das mutações. Os vírus estão sempre em processo evolutivo e evoluem mais rapidamente do que qualquer patógeno porque a produção de partículas virais dentro de uma pessoa infectada é imensa. Nesse processo ocorrem erros naturais, principalmente nos vírus com genoma de RNA. No caso do coronavírus, ele é um vírus de RNA, mas é uma exceção à regra porque tem atividades de correção na replicação do material genético. Só que não é um processo de correção perfeito, e os erros que acontecem são o que chamamos de mutações. A maioria delas não tem consequências biológicas, mas podem ocorrer mutações que trazem vantagens ao vírus e tendem a ser fixadas na população. Foi o que aconteceu com a P.1, por exemplo. Isso ocorre porque o vírus agora se liga melhor com o receptor humano ou consegue escapar dos anticorpos ou replica melhor, ou seja, surgiu alguma característica que dá vantagem ao vírus. Essas populações que têm vantagens tendem a permanecer e, então, chamamos de variantes. Mas é preciso ter cuidado: você pode detectar uma mutação numa amostra, mas isso não significa que é uma nova variante que se estabeleceu. Para ser considerada estabelecida, é preciso ter cinco sequências de pessoas que não têm relação entre si infectadas pela variante.

CH: Com que frequência surgem as variantes?

FN: Do segundo semestre para cá, depois da detecção da primeira variante de preocupação (VOC) no Reino Unido, é notório que houve uma aceleração na evolução do vírus. Um teste que fazemos é uma relação entre distância genética do vírus em função do tempo, e isso mostrou que essas variantes começaram a acelerar e não seguem mais a velocidade observada até então. A P.1 e a B.1.351 deram saltos evolutivos nítidos, são muito diferentes do que se conhecia. Quanto mais casos, mais mutações. Quanto mais mutações, mais chances de aparecer uma variante. Nosso risco maior é surgirem cada vez mais variantes adaptadas aos humanos, não podemos esquecer que esse vírus teve uma origem zoonótica. É por isso que a gente precisa urgentemente reduzir a circulação do vírus no Brasil e no mundo seja com as vacinas ou com as medidas que temos hoje, que são distanciamento social, uso de máscaras e lavagem periódica das mãos. Nós é que estamos dando chances para o vírus se desenvolver.


+ cuidado: A gente precisa urgentemente reduzir a circulação do vírus no Brasil e no mundo seja com as vacinas ou com as medidas que temos hoje, que são distanciamento social, uso de máscaras e lavagem periódica das mãos

CH: As vacinas atuais protegem contra essas variantes?

FN: Houve uma queda de proteção dos níveis de anticorpos frente a essas variantes, principalmente a B.1.351. Só que algumas vacinas, como a da AstraZeneca/Oxford, que a Fiocruz vai produzir totalmente nacional nos próximos meses, induzem também uma potente resposta celular. Então, mesmo que haja uma queda na resposta de anticorpos, não necessariamente a vacina perderá a eficiência porque tem outros mecanismos envolvidos na resposta imune. Se o vírus conseguir evoluir de modo que surja uma variante que escape das vacinas, o que ainda não foi detectado, vai ser um problema muito sério. Teremos que dar um passo para trás e readequar as vacinas para inserir uma variante nova que esteja escapando. Os dois trabalhos sobre a Coronavac de que tenho conhecimento mostraram proteção mesmo na presença da P.1. Em relação à AstraZeneca, participamos de um estudo que mostrou que a proteção de anticorpos contra a P.1 ficou intermediária. Não caiu tanto quanto diante da variante B.1.351, mas caiu mais do que em relação à B.1.1.7. Mas a P.1 continua evoluindo. E esse é um outro trabalho que nós submetemos há pouco tempo, está em pré-impressão. Pode ser que a P.1 se torne ainda mais difícil de ser neutralizada como é o caso da B.1.351.

 

CH: Quais são as características da variante P.1 que a tornam tão diferente da cepa de SARS-CoV-2 original?

FN: Como a P.1 é uma evolução da linhagem B.1.1.28, o correto é comparar com ela e não com a primeira da qual está muito distante. No dia em que o Japão deu o alerta da P.1, nós tínhamos acabado de sequenciar as amostras de novembro e estávamos sequenciando as de dezembro. Assim, após a publicação da sequência da P.1, no dia 11 de janeiro, nós comparamos com amostras de novembro e conseguimos, naquele dia, mostrar que a P.1 era sim originada do Amazonas a partir da linhagem B.1.1.28. No dia 12 de janeiro, demos o alerta de que não só a P.1 estava em nove municípios do Amazonas, mas, também, que causava reinfecção. A primeira sequência de P.1 que analisamos já era um caso de reinfecção. Então, o que nós sabemos da P.1: surge sem nenhum intermediário mais próximo, salta diretamente da ancestral B.1.1.28, tem várias mutações, mas as três mais importantes são na RDB da spike, e se torna dominante muito rapidamente. Nós também encontramos aqui no Amazonas uma carga viral maior nos pacientes de P.1 em comparação aos outros. Além das alterações na spike, há uma mutação que tem me chamado muito a atenção na proteína NSP6 e que aparece nas três variantes de preocupação. É algo que tem que ser investigado. A mutação na spike é a mais importante por ser o primeiro contato com a célula e responsável pela evasão dos anticorpos, mas outras proteínas tem regiões que, se modificadas, podem ter consequências importantes. Outro ponto: encontramos uma sequência de P.1, que chamamos de P1-like, e que ainda não chamamos de nova variante porque temos quatro sequências e não cinco, mas vamos acabar encontrando uma quinta. Ela derivou do mesmo ancestral da P.1.

 

CH: A P.1 e outras novas variantes são responsáveis pelo aumento de casos em jovens?

FN: Do ponto de vista biológico, não há uma resposta do por que a P.1 afetaria mais os jovens. O que podemos dizer: no Amazonas, prevíamos o aumento de casos no final do ano porque, na segunda quinzena de novembro, começa o inverno amazônico, temporada de chuvas que, historicamente, tem aumento das infecções por vírus respiratórios. Sabíamos também que as pessoas se encontrariam nas festas de fim de ano. O que ainda não sabíamos na época era da circulação da P.1, uma variante mais transmissível. A hipótese que colocamos no nosso trabalho é que a circulação de abril de 2020 até janeiro de 2021 deu à linhagem B.1.1.28 a chance de evoluir para P.1. E aí as condições do clima e aglomerações das festas somadas a uma variante mais transmissível, tiveram como resultado a catástrofe que se viu no Amazonas. Então, respondendo à pergunta, há uma parte comportamental e não só biológica: os jovens estão mais expostos no momento em que está circulando uma variante mais transmissível.


+ casos: As condições do clima e aglomerações das festas, somadas a uma variante mais transmissível, tiveram como resultado a catástrofe que se viu no Amazonas

CH: A reinfecção pelas variantes é mais fácil?

FN: A reinfecção é mais fácil por conta dessas mutações. Mas o primeiro caso de reinfecção no Brasil foi causado pela P.2. Não é só P.1 que pode causar.

 

CH: Existem estudos de modelagem ou predição capazes de prever para onde a evolução do SARS-CoV-2 está se direcionando? O vírus se tornará mais brando?

FN: Nosso estudo mais recente faz modelagens na estrutura na proteína, e nós sugerimos que as evoluções mais recentes estão acontecendo num domínio chamado NTD, onde estão acontecendo inserções e deleções não só em P.1, mas em outras linhagens como a N.10. Então, é nessa região do vírus que vamos observar mais variações agora. E não é à toa porque, justamente nessa posição, existe o chamado supersítio antigênico, que é alvo das respostas de anticorpos e é onde o vírus vai mudar para tentar escapar da presença desses anticorpos. O vírus está ficando cada vez mais agressivo, mas eu diria que, no fundo, ele está é cada vez mais adaptado aos seres humanos. Vamos imaginar que, no início, havia uma porta, que era a superfície da nossa célula, a fechadura era o receptor celular e o vírus tinha uma chave que não era muito boa e tinha que dar um jeitinho para abrir. Agora o vírus tem uma chave que encaixa perfeitamente e abre facilmente essa porta. Essa teoria de que os patógenos ficam mais brandos ao longo do tempo existe há muitos anos, mas não sei se aplica sempre na virologia. Por exemplo, o HIV e o dengue ficaram menos letais? Não é verdade. Outra coisa: vamos dizer que essa teoria esteja correta, mas quantas pessoas teriam que morrer até chegarmos nesse nível de evolução do vírus?


+ agressivo: No início, havia uma porta, que era a superfície da nossa célula, a fechadura era o receptor celular e o vírus tinha uma chave que não era muito boa. Agora o vírus tem uma chave que encaixa perfeitamente e abre facilmente essa porta

CH: O Brasil consegue monitorar efetivamente o surgimento de novas variantes de interesse antes que estas se tornem um problema de saúde pública?

FN: Primeiro, sempre é possível melhorar, os pesquisadores brasileiros têm consciência disso. Todos estávamos fazendo o que era possível dentro dos investimentos que existem. Não dá para comparar com Estados Unidos ou Reino Unido, é outra escala, são anos de preparação. Aqui, no Amazonas, nós conseguimos monitorar rapidamente porque há anos vínhamos discutindo a criação de uma rede genômica de vigilância em saúde. Brincamos que passaram-se duas copas do mundo até sair do papel. E aí ela saiu do papel em outubro ou novembro de 2019. O timing foi perfeito. Não imaginávamos o que viria pela frente, mas isso nos fortaleceu diante do coronavírus. Fomos o primeiro estado da região Norte a sequenciar o SARS-CoV-2. Quando fizemos o primeiro genoma aqui, havia apenas 17 sequenciados no Brasil. Mas obviamente é possível melhorar. Nas próximas semanas vocês vão ver o aumento da produção de genomas não só pela Fiocruz como por outras instituições. No nosso caso, especificamente, quando surgiram os primeiros casos na China, pedimos insumos para sequenciamento e para fazer PCR em tempo real. Em fevereiro, já tínhamos os insumos para detecção e, no começo de março, para sequenciamento. Nosso sequenciador foi instalado uma semana antes do primeiro caso no Amazonas. Se tivéssemos esperado o primeiro caso para agir, quando teríamos a resposta? Agora as pessoas têm consciência de que vigilância genômica não é ficção, é uma ferramenta que veio para ficar. Hoje já se discute a vigilância integrada, que une a genômica, a vigilância tradicional e dados da vigilância digital. Tudo isso deve ser monitorado. É o caminho a seguir. Mas é importante lembrar: o Reino Unido tem a maior rede de vigilância genômica do mundo, mas nem eles conseguiram detectar precocemente a B.1.1.7. Quando ela foi detectada, já estava no país inteiro. Nem o maior sistema de vigilância do mundo foi capaz de bloquear isso. A vigilância genômica não vai sozinha impedir a disseminação das linhagens. Se as pessoas tivessem mantido o mínimo de distanciamento nas férias de verão no Reino Unido, a variante não teria se espalhado desse jeito. A vigilância mostra o que aconteceu e, a partir daí, pode combater, mas dificilmente vai pegar o primeiro caso porque a variante tem que estar circulando. Outro exemplo que reforça isso é em relação à P.1: o primeiro alerta da P.1 foi feito por nossos colegas do Instituto de Doenças Infecciosas do Japão, em 10 de janeiro deste ano. A partir disso, aumentamos o número de testagens para descobrir quando tinha surgido a P.1 e detectamos a mais antiga em 3 de dezembro de 2020. Mais de um mês antes do alerta dos japoneses, a P.1 já existia e já circulava. Para reduzir novas variantes, precisamos dar menos chance de o vírus fazer mutações. Como fazemos isso? Diminuindo a taxa de infecção, seja com o uso de máscara, com o distanciamento social, lavando as mãos ou com a vacinação.

 

CH: Como é feito o monitoramento dessas variantes na Fiocruz Amazonas?

FN: A ideia de uma vigilância bem feita é que ela precisa estar sempre se antecipando. Quando o primeiro caso do estado foi confirmado em 13 de março pelo LACEN Amazonas, já estávamos preparados para agir. No dia 16, confirmamos o segundo caso de uma pessoa assintomática que veio da Espanha. Esse foi o primeiro genoma sequenciado na região Norte. Nosso sequenciador havia sido instalado no dia 12, tivemos que fazer o treinamento virtual, e no dia 24 de março esse genoma estava depositado na maior base de dados do SARS-CoV-2 do mundo (www.gisaid.org). Foi um mês intenso. Depois disso, junto com a vigilância do estado, partimos para sequenciar a maior abrangência possível do ponto de vista geográfico, o que é um desafio logístico aqui. Há estrada para poucos municípios, e o restante é alcançável de barco ou avião. O Greenpeace também nos apoiou na questão logística. Conseguimos sequenciar o vírus de pacientes de 25 municípios, e ao longo do tempo, não bastava sequenciar só por um mês. Nosso objetivo sempre foi ter sequências de alta qualidade, com mais de 98% do genoma, até porque, como é um vírus novo, não sabíamos onde as mutações iriam ocorrer. De março de 2020 até janeiro de 2021, sequenciamos todas as semanas epidemiológicas e tivemos uma abrangência bastante grande do ponto de vista geográfico. Dessa maneira podemos entender muito melhor o que aconteceu no Amazonas.


+ abrangência: De março de 2020 até janeiro de 2021, sequenciamos todas as semanas epidemiológicas e tivemos uma abrangência bastante grande do ponto de vista geográfico. Dessa maneira podemos entender muito melhor o que aconteceu no Amazonas

Por Valquíria Daher
Jornalista, ICH

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