Rumo à sustentabilidade

A consolidação de sistemas sustentáveis vem sendo gradualmente reconhecida, no Brasil e no mundo, como a grande promessa na produção de alimentos de forma responsável. Onde estão esses produtores e qual a real parcela desses sistemas se comparados aos convencionais? Dados de sensoriamento remoto, big data e machine learning permitem mapear e criar um protocolo de monitoramento contínuo desse modelo de produção? E as respostas já começam a aparecer para o estado do Mato Grosso.

CRÉDITO: FOTO ADOBE STOCK

A organização das Nações Unidas para a alimentação e agricultura (FAO) vem alertando para um ciclo global de impactos e conflitos socioambientais em torno de recursos para a agricultura com significativa pressão sobre ecossistemas locais e em meios de subsistência de populações tradicionais. Esse cenário se acentua considerando a estimativa do aumento crescente da população mundial, forte taxa de urbanização dos países em desenvolvimento e a competição desses recursos agrícolas para a produção de biocombustíveis.

Hoje, estima-se que um terço da superfície agrícola mundial já esteja em estágio médio ou avançado de degradação. Pouco surpreenderia se relacionarmos esse contexto à realidade da cadeia produtiva agropecuária no Brasil. Porém, uma análise mais cuidadosa, revela que, considerando a sua enorme diversidade regional, o país apresenta diversas e diferentes realidades rurais.

O Brasil convive com uma ativa fronteira agrícola, onde ininterruptamente frentes pioneiras convertem consideráveis porções do território nacional em novas áreas de produção. Ao mesmo tempo, em outras regiões, se observa um processo de consolidação da agricultura, intensificação do uso do solo, diminuição do desmatamento e estabilização da paisagem rural  – em muitos casos, com tecnologias de produção sustentável que vêm consolidando o protagonismo do país na proposição de soluções viáveis para a coexistência entre produção e conservação.

 

Contexto brasileiro


Nos últimos relatórios internacionais sobre a emissão de gases de efeito estufa (GEE), o Brasil é apontado como um grande emissor, com suas principais fontes emissoras (em torno de 70%) relacionadas à agropecuária e ao desmatamento

CREDITO: FOTO ADOBE STOCK

Nos últimos relatórios internacionais sobre a emissão de gases de efeito estufa (GEE), o Brasil é apontado como um grande emissor, com suas principais fontes emissoras (em torno de 70%) relacionadas à agropecuária e ao desmatamento. As estimativas do setor agropecuário ainda podem ser consideradas conservadoras, pois não são contabilizadas as emissões provenientes de algumas técnicas do plantio convencional e da pastagem degradada, hoje estimada em cerca de 60 milhões de hectares.

Também temos menos transparência ao omitir o potencial de estoque de GEE em formas de manejo conservacionista (de solos, água, recursos em geral), principalmente provenientes do pasto manejado, da recuperação da pastagem degradada, do uso de forrageiras para manter o solo sempre coberto e, sobretudo, da integração produtiva, seja pela lavoura, pecuária e/ou floresta (ILP e ILPF), seja pelos sistemas agroflorestais (SAF).

A implantação dessas iniciativas foi instrumentalizada como política pública junto ao governo brasileiro da época, como fruto do compromisso firmado voluntariamente de redução da emissão de GEE durante a COP 15 (Convenção da Biodiversidade) ocorrida em Copenhague em 2009. Na ocasião, foram propostas ações conservacionistas no manejo agrícola que deram origem ao Plano da Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (ABC).

Nesse contexto, os sistemas integrados ILP e ILPF merecem ser destacados como uma estratégia muito promissora para atingir as metas firmadas. Combinando culturas, pecuária e/ou silvicultura na mesma área em forma de rotação ou sucessão, é possível formar um único sistema harmônico capaz de aumentar e manter a fertilidade e matéria orgânica do solo, favorecendo a produção de biomassa, possibilitando estocar carbono, conservar o solo e reter água.

Esse conjunto de técnicas, além do forte impacto positivo ao ambiente, é um grande atrativo para o produtor, pois há um aumento significativo da produção total do sistema. Somado a isso, tem o potencial de recuperar pastagens degradadas, utilizando fertilidade residual das diferentes culturas em rotação e sucessão.

Para colocar o plano em prática, há um grande esforço de uma rede multi-institucional que atua em diferentes frentes de ação: desenvolvimento e aprimoramento das tecnologias em condições agroambientais específicas, difusão para a adesão dos produtores e linha de crédito específica para adoção desses sistemas.

 

Sistemas implementados

Apesar de existirem estimativas com base em entrevistas, não se tem ainda um sistema estruturado de monitoramento contínuo que possibilite indicar onde se encontram esses sistemas e quantos deles ocorrem a cada ano. Esse tipo de informação é fundamental para reportar o cumprimento das metas firmadas, tanto para organismos internacionais, como para a sociedade civil, além de ter uma importância estratégica para o aprimoramento da política pública.

Em 2015, motivada a preencher essa lacuna e demanda, uma equipe multidisciplinar de pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Embrapa Solos, liderada por Margareth Simões, submeteu, aprovou e conduziu o Projeto GeoABC – Metodologias e Inovações Tecnológicas para o Monitoramento por Satélite da Agricultura de Baixa Emissão de Carbono em Apoio à Governança do Plano ABC. O projeto contou com o apoio da Capes/Cofecub, e com a parceria e cooperação de pesquisadores franceses, coordenados por Agnés Bégue, do UMR TETIS/Cirad e das universidades AgroParisTech e Rennes 2. O objetivo era avaliar métodos e técnicas inovadoras na área de sensoriamento remoto para a detecção de práticas de cultivo e sistemas de produção lavoura-pecuária-floresta (ILPF) como forma de apoio ao Plano ABC.

Entre as diversas realizações acadêmico-científicas, cabe destacar a tese realizada em cotutela entre o Programa de Pós-graduação em Meio ambiente (PPGMA/UERJ) e a Universidade AgroParisTech, na França, que se propôs avaliar métodos e técnicas inovadoras na área do sensoriamento remoto, integrado às técnicas de big data e aprendizado de máquina para a detecção de práticas de cultivo e sistemas integrados de produção agrícola. O trabalho conquistou o primeiro lugar da categoria geral na 3ª Edição do Prêmio MapBiomas, e o presente artigo traz um breve comentário sobre os resultados e os desafios enfrentados na abordagem metodológica proposta.  

 

Big data, imagens de satélite e ILPF


A pesquisa parte da premissa de que o registro histórico e sistemático de grandes áreas realizado pelos satélites de observação da Terra tem um enorme potencial para compor uma metodologia de monitoramento do ILPF (sistema integrado lavoura-pecuária-floresta)

CREDITO: FOTO EMBRAPA

A pesquisa parte da premissa de que o registro histórico e sistemático de grandes áreas realizado pelos satélites de observação da Terra tem um enorme potencial para compor uma metodologia de monitoramento do ILPF (sistema integrado lavoura-pecuária-floresta). Quando tais dados são processados com as tecnologias de big data, em ambientes de computação de alto desempenho em nuvem e métodos de aprendizado de máquina (machine learning), esse potencial ganha uma escala sem precedentes.

O registro dos dados da superfície da Terra está sendo gerado a bordo de inúmeros novos satélites, estimando-se um volume diário em torno de 2 petabytes (1015 bytes), o que levou a criação do conceito de spatial big data ou, mais especificamente nesse caso, de big earth observation data.

O big earth observation data impulsionou os testes para o mapeamento de alvos complexos, como os sistemas integrados, que são dispersos no espaço geográfico em parcelas com dimensões relativamente pequenas e, principalmente, muito dinâmicos no tempo, uma vez que se caracterizam por diferentes componentes ou vários cultivos em consórcio, sucessão ou rotação. Para esses tipos de sistemas, uma única imagem de satélite, em um único dia, não permite compreender toda a dinâmica anual, como tradicionalmente é feito no mapeamento de pastagens contínuas, ou culturas perenes e semiperenes.

Para compreender os diferentes ciclos sazonais das culturas, é necessário um conjunto de imagens distribuídas ao longo do ano, possibilitando a reconstrução dos ciclos anuais das culturas contidas em cada sistema, ou seja, várias imagens de uma mesma área vão gerar um mapa anual. Esse conjunto de imagens de sensoriamento remoto é chamado de séries temporais de índices de vegetação, que, com a tecnologia recente, possibilita estruturar dados multidimensionais (em forma de cubos) de observação da Terra.

Tais tecnologias estão cada vez mais acessíveis. É o caso do Google Earth Engine, que possibilita, a partir de uma interface de programação, o acesso a um catálogo de petabytes de imagens de satélite e o potencial uso da estrutura computacional da empresa Google para o processamento paralelo em nuvem dessa massa de dados.

Essa plataforma foi utilizada no projeto e possibilitou a construção de um cubo de dados com 3.864 imagens de satélite, cobrindo o estado do Mato Grosso em sete anos-safra. Dentro da mesma plataforma, foram testados diversos algoritmos de inteligência artificial. Com essa estratégia, o projeto teve acesso a uma plataforma computacional de alto desempenho, técnicas de aprendizado de máquina e um robusto cubo de dados multidimensional.


Os dados são a base para descrever o que se pretende conhecer sobre o mundo ou sobre as coisas, mas é necessário dar sentido a eles, ou seja, agrupar diversos pixels e criar diferentes rótulos, possibilitando, dessa forma, que o algoritmo aprenda

CREDITO: CAPTURA DE TELA GOOGLE EARTH ENGINE

Porém, isso não foi suficiente para desenvolver e testar uma metodologia de mapeamento dos sistemas integrados. Os pilares das técnicas de aprendizado de máquina vão além da disponibilidade dos algoritmos, da capacidade de processamento e dos dados em si. Os dados são a base para descrever o que se pretende conhecer sobre o mundo ou sobre as coisas, mas é necessário dar sentido a eles, ou seja, agrupar diversos pixels e criar diferentes rótulos, possibilitando, dessa forma, que o algoritmo aprenda.

Nesse sentido, uma etapa crucial é a construção de uma consistente base de aprendizagem. Mais uma vez, diferente dos sistemas de cultivo tradicionais, a coleta dos dados em campo para a construção dessa base se torna complexa, uma vez que diferentes momentos do ano deveriam ser visitados para compreender e coletar informações de um sistema integrado.

Nessa etapa, foi fundamental a parceria com as unidades da Embrapa e com grupos como  Bom Futuro, que, com sua capilaridade, permitiu coletar informações com base em entrevistas, dados históricos e visitas guiadas, somando um conjunto de mais de 800 talhões (porções) de áreas conhecidas e entender como a realidade de campo poderia ser modelada e traduzida em dados para a construção da base de aprendizagem.

 

GeoABC e MapBiomas

O MapBiomas vem, a cada ano, publicando novidades, aprimorando sua metodologia com mais níveis hierárquicos para cada classe, e já é consolidado uma importante fonte de dados. Uma lacuna ainda existente no grupo da classe agropecuária se refere ao mapeamento dos sistemas complexos, ou seja, os cultivos sequenciais, que consistem em colher mais de uma safra em um mesmo ano. Esses sistemas são amplamente difundidos no Brasil, principalmente no eixo Centro-norte de produção de soja.

Os sistemas integrados fazem parte da lógica de cultivos sequenciais, mas com uma complexidade adicional, pois apresentam mais elementos, como é o caso da pastagem e/ou da floresta plantada.

A metodologia proposta partiu da classe agropecuária da coleção 5.0 do MapBiomas, especializando, ou seja, criando mais três níveis. Isso possibilitou diferenciar a monocultura de soja dos sistemas sequenciais, além de dois tipos de sistemas integrados, a integração da soja com a pastagem e a integração da soja com milho e pastagem.

Os testes foram realizados no Mato Grosso por ser um estado com uma diversidade ambiental significativa, com três dos seis biomas brasileiros, e por ser um dos principais produtores nacionais de gado e soja, com presença de impactos ambientais e sociais significativos, com pastagens degradadas e fronteiras agrícolas ativas. Nesse sentido, o Mato Grosso apresenta grande relevância e oportunidades para a implantação dos sistemas integrados .

 

Sistemas integrados em Mato Grosso

Os resultados foram validados com boa acurácia e foi possível identificar que os sistemas de monocultura vêm perdendo espaço de forma significativa e que os sistemas sequenciais associados à soja são predominantes hoje no Mato Grosso, sendo preferencialmente milho, milheto, seguido dos sistemas integrados do tipo ILP (integração lavoura-pecuária) . De forma absoluta, a intensificação sustentável pelos sistemas integrados ILP mais que duplicou no estado, passando de aproximadamente 1,1 milhão de hectares (ha) no ano safra 2012/2013 para cerca de 2,6 milhões ha no período 2018/2019 (figura 1).

Figura 1. Áreas totais dos sistemas de produção intensificados CRÉDITO: PRODUZIDO PELOS AUTORES

De forma relativa, é possível observar que, dentro das opções de cultivos sequenciais, os ILP vêm ganhando maior importância, passando de 18,6% para 28,9% do total dos sistemas sequenciais, à medida que o algodão aumenta sua proporcionalidade de 4,6% para 11,1%. No período analisado, o sistema de soja com cereal perde sua importância proporcional, caindo de 76,9% para 60%, sugerindo uma fase de aumento na intensificação de forma integrada entre sistema lavoura-pecuária.

Pouco a pouco, os sistemas integrados vêm ocupando o espaço dos sistemas convencionais, apresentando um incremento importante no Mato Grosso e se dispersando geograficamente (figura 2). No primeiro ano-safra da série analisada, há maior concentração dos sistemas integrados para a região do Médio Norte do estado, com destaque para os municípios de Sinop e Sorriso. Para o ano-safra 2018/2019, é possível identificar a consolidação da região do Médio Norte como mais importante; porém, apresentando um padrão mais disperso.

Figura 2. Áreas de ILPF mapeadas pela metodologia. CRÉDITO: PRODUZIDO PELOS AUTORES

Um grande incremento é percebido nas regiões Sudeste e Noroeste, e início da adoção na região Norte. Ao todo, para o ano-safra 2018/2019, 117 dos 141 municípios apresentavam áreas implantadas com ILP, contra os 98 municípios do período 2012/2013 (figura 3).

Figura 3. Dispersão da adoção dos sistemas integrados por índice de densidade Kernel. CRÉDITO: CEDIDO PELOS AUTORES

Os resultados encontrados apontam para uma trajetória de intensificação sustentável da agropecuária no estado do Mato Grosso. As técnicas testadas e a modelagem realizada neste estudo se mostraram capazes de compor uma metodologia de monitoramento de sistemas complexos de cultivo sequencial; em particular, nos sistemas integrados, sobretudo, de lavoura-pecuária.

Além de atender diretamente a governança do Plano ABC, as informações sobre as taxas de adoção, expansão e distribuição espacial dos sistemas integrados no Brasil têm sido requisitadas por diversos agentes interessados. É o caso das agências de governo ligadas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), da Rede ILPF, do Observatório ABC (FVG-SP), da Plataforma ABC (Multiministerial/Embrapa), do Observatório do Clima da Fundação Getúlio Vargas (FVG), das universidades e instituições de pesquisa, entre outros agentes.

Não há dúvidas de que a edificação de uma agricultura econômica, social e ambientalmente sustentável alçará o país a um lugar de destaque, como uma das maiores potências agroambientais do planeta. Contudo, a obtenção dessa meta requer a integração de diversas políticas públicas, tanto setoriais como multissetoriais, que, por sua vez, demandam métricas e indicadores que possam avaliar e acompanhar a evolução da agricultura nacional rumo ao ideal de sustentabilidade.

Patrick Kuchler
Programa de Pós-graduação em Meio Ambientais (PPGMA),
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Departamento de Geografia – FEBF
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Margareth Simões
Empresa Brasileira de pesquisa agropecuária – Embrapa Solos
Programa de Pós-graduação em Meio Ambientais (PPGMA),
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Rodrigo Peçanha Demonte Ferraz
Empresa Brasileira de pesquisa agropecuária – Embrapa Solos

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