A primeira parte da adaptação para os quadrinhos do livro Sapiens: uma breve história da humanidade, do historiador israelense Yuval Noah Harari, é um trabalho interessante de diálogo entre a linguagem gráfica e o famoso best-seller, que ganhou leitores no mundo inteiro desde 2011. Nesse primeiro volume, analisam-se os milênios iniciais da existência humana na Terra, com destaque para teorias evolutivas e interações com a biologia, a arqueologia, a antropologia e, também, com uma certa ‘psicologia evolutiva’.
A obra se debruça em uma investigação que cria paralelos entre as especificidades do processo evolutivo dos Homo sapiens e acontecimentos posteriores, como a formação de culturas e sociedades humanas e o surgimento de guerras, de revoluções e até de uma alegada tendência contemporânea à obesidade.
A narrativa principal é representada por meio de diálogos entre a personagem de Harari e professores de diversos lugares do mundo e é entremeada por narrativas paralelas – como a das aventuras de ‘Bill, o pré-histórico’ –, e por recursos que o gênero dos quadrinhos permite, como diálogos com hipotéticos neandertais ou uma intricada investigação através do tempo para verificar a responsabilidade dos H. sapiens sobre as extinções em massa ocorridas ao longo de milênios.
Os recursos visuais são explorados de maneira bem-sucedida pelo trio que encabeçou a transformação do livro em história em quadrinhos, proporcionando ao leitor viagens no espaço e no tempo que facilitam a visualização da argumentação de Harari em torno de temas que podem ser de difícil entendimento para o público não especialista. Por meio de metáforas e da lógica sequencial, conceitos que levariam páginas para serem explicados em texto ganham rapidamente uma dimensão visual. Assim, o mérito do best-seller de conseguir articular, em uma narrativa acessível, os encontros interdisciplinares entre ciências tão distantes quanto a biologia e a antropologia é mantido e até aprofundado nessa adaptação.
Por outro lado, a versão em quadrinhos também mantém a controversa escolha em definir uma ‘história da humanidade’ a partir do recurso ao evolucionismo e à ‘psicologia evolucionista’. Esse objetivo se anuncia desde as primeiras páginas, quando a personagem de Harari, interpelando diretamente o leitor, propõe que: “Não dá para entender algo como a Revolução Francesa sem antes entender a evolução dos seres humanos. Os humanos são animais, e tudo o que aconteceu na história seguiu as leis da física, da química e da biologia”. O que pode ser visto como uma frase simples é provavelmente o mais questionável projeto desta obra: o de construir uma “breve história da humanidade” decorrente da maneira como se deu a seleção natural do H. sapiens.
As tensões em torno dessa afirmação se tornam visíveis dentro da narrativa à medida que esse projeto encontra uma grande dificuldade, imposta justamente pelo fator decisivo do sucesso evolutivo do H. sapiens enquanto espécie: a capacidade de comunicação e cooperação, ou seja, a criação de culturas e sociedades. Essas construções sociais e culturais, às quais o autor chama de “ficções”, são o que diferenciaria mais profundamente os H. sapiens de outras espécies de humanos com as quais essa população se relacionou por milhares de anos.
O momento crucial da mudança que teria levado os humanos a se tornarem um ‘animal social’ como nenhum outro estaria situado há cerca de 70 mil anos, quando ocorreu o que é nomeado como ‘revolução cognitiva’. Essa revolução silenciosa seria o ponto principal para entender as vantagens que levaram um animal tão próximo à base da cadeia alimentar, sem maiores impactos em seu hábitat, a se transformar, em questão de milênios, em uma espécie dominante e, como deixa clara a última seção do livro, uma ameaça para todos os ecossistemas nos quais existiu e para a própria manutenção da cadeia alimentar em si.
Mas por que essa conclusão é um complicador para o desenvolvimento da linha de argumentação que liga necessariamente a Revolução Francesa ou as formas de organização familiar, a sexualidade e a obesidade no mundo contemporâneo à origem dos humanos como espécie? A questão é que, ao afirmar que o ponto chave para se entender a evolução humana é justamente o desenvolvimento da capacidade de criar culturas e sociedades, com suas representações, instituições, rituais etc. – o que Harari chama de ‘realidade inventada’ –, o autor põe em destaque os motivos pelos quais é tão difícil e limitado explicar a história por sua relação com uma origem remota e biológica.
Assim, a ideia de que, nas palavras da personagem da bióloga evolucionista Saraswati, “nossos hábitos alimentares, nossos conflitos e nossa sexualidade são resultado de mentes caçadoras-coletoras lidando com o mundo pós-industrial”, apresentada logo após a explicação sobre a ‘revolução cognitiva’, é, no mínimo, contraditória. Afinal, se essas “mentes caçadoras-coletoras” apresentam, como alegado, a capacidade de entender o mundo a partir de sentidos e significados constituídos socialmente, como é possível dizer que problemas e questões contemporâneos poderiam ser explicados simplesmente pela incapacidade de adaptação do ser humano a esse mundo social?
A argumentação do livro, por mais interessante que pareça, pode ser perigosa por ignorar que elementos como assimetrias de poder, mudanças alimentares, revoluções, colonizações, identidades raciais e nacionais e outras configurações estruturantes para a vida e o dia a dia das pessoas em sociedade hoje são acontecimentos muito mais recentes na história humana. Ao situar a explicação para conflitos mundiais em um complexo subconsciente de eternos “coletores-caçadores”, a obra não estaria optando por uma interpretação que naturaliza, por exemplo, as guerras e as desigualdades das quais elas partem ou que elas constroem na humanidade contemporânea?
Esse anseio por uma origem que pode explicar tudo no presente, que se apresenta como a forma acabada do fenômeno que inicia, deve fazer grandes historiadores e filósofos se debaterem no túmulo. Trata-se do que podemos chamar de determinismo, uma forma de interpretar a história que entende o passado como uma caminhada linear e unívoca para um fim que já estava posto antes mesmo de se tornar realidade, ou seja, do qual não é possível escapar.
Apesar desse primeiro volume não extrapolar muito os resultados do uso desse conceito na interpretação de Harari sobre a história dos milênios mais recentes da humanidade, pode-se dizer que o determinismo é uma boa explicação para o fato de que, ao longo da obra, toda vez que um exemplo histórico é dado para corroborar alguma proposição teórica, a escolha é por um acontecimento situado na história europeia.
A julgar pelo subtítulo “o nascimento da humanidade”, poderíamos imaginar que o continente africano teria mais destaque na narrativa. Mas a África surge apenas como plano de fundo para o surgimento da espécie humana, estando ligada à sua forma ainda inicial, que, levando em conta a linha do tempo que inicia o livro, só iria realmente se tornar construtora de conhecimento por volta de 1500, quando “a humanidade admite sua ignorância e começa a adquirir poder sem precedentes. Europeus começam a conquistar a América e os oceanos.”
Assim como confunde origem com natureza inescapável, a obra parece confundir história europeia com história da humanidade. Esse equívoco parece vir precisamente da visão da história como um caminho inexorável e único, com sentido fixo e percorrido quase como decorrência natural de sua origem.
Raissa Brescia dos Reis
Instituto de História,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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