Verkhoyansk é uma cidadezinha de pouco mais de 1.300 habitantes no norte da Rússia, cuja latitude de 67°33’ a coloca um grau ao norte do Círculo Polar Ártico. Uma pesquisa por imagens do lugar, no Google, nos leva a paisagens congeladas, pessoas usando ushankas (o ‘gorro russo’) e termômetros marcando abaixo de -50°C. Não à toa, pois é um dos poucos locais do hemisfério Norte que competem com a Antártica em termos de temperaturas mínimas climatológicas.
Lugar de exílio no passado czarista, Verkhoyansk dificilmente apareceria em reportagens da grande mídia do século 21, a não ser que algo extraordinário acontecesse. Mas, em meados deste ano pandêmico de 2020, o nome aparecia estampado nos jornais The New York Times, Deutsche Welle, The Guardian e em quase todos os portais de notícias do planeta por causa da temperatura máxima observada ali no dia 22 de junho: 38°C ‘acima’ de zero. Com toda a bizarrice da escala, o registro parece ainda mais dramático em graus Fahrenheit, pois excede a barreira dos 100°F.
Importante dizer: a amplitude térmica de Verkhoyansk é, de fato, bastante grande e, a depender dos sistemas meteorológicos, durante o auge do verão, a ocorrência de temperaturas acima de 30°C não é algo extraordinário. No entanto, o recorde ficou muito acima de todos os registros anteriores e, mais importante, não se tratou de um fenômeno pontual, mas de uma entre várias manifestações de uma ‘onda de calor’ de escala continental.
Abarcando quase toda a Sibéria, a onda de calor de 2020, segundo o World Weather Attribution, seria “praticamente impossível” sem o aquecimento global. Prolongada e intensa, tal onda teve meses de temperatura persistentemente acima da média. A avaliação é a de que o efeito antrópico sobre o clima global aumentou em 600 vezes a sua probabilidade de ocorrência.
Verkhoyansk ostentava até recentemente o recorde de temperatura mais baixa registrada em uma estação meteorológica (-67,8°C em 1892, empatado com outro registro na Rússia, em Oimekon, 41 anos depois). Foi desbancada por uma medição de temperatura em uma estação automática na Groenlândia, que cravou -69,6°C em 1991, mas que só foi definitivamente verificado (e, portanto, oficializado) este ano pela Organização Meteorológica Mundial. O que parece, entretanto, é que não apenas Verkhoyansk, mas todo o Ártico correm o risco de perder muito mais que um recorde pitoresco. É seu próprio clima que está em jogo, aquilo que, em última instância, define o Ártico.
Um canário engaiolado costumava ser levado por mineiros para servir de aviso sobre a presença de gases tóxicos (como monóxido de carbono) em minas de carvão. Mais vulnerável do que os seres humanos, o canário morria antes que o ambiente se tornasse tóxico para eles. Além das porções continentais do norte da Rússia e do Canadá e da Groenlândia, a porção do planeta ao norte do Círculo Polar Ártico abrange uma ampla extensão de oceano. O oceano Ártico tem sido um verdadeiro ‘canário’ na ‘mina’ do aquecimento global, e ele está agonizando.
Segundo o Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo dos Estados Unidos (NSIDC, na sigla em inglês), a área de cobertura de gelo marinho no Ártico encolheu, em 2020, a 3.737 milhões de km2 no dia 15 de setembro, quando atingiu seu mínimo anual. Essa área é 41% menor do que a média do período de 1981 a 2010.
O gelo retrai não apenas em área, mas também em espessura; portanto, o efeito em volume é ainda mais significativo. Em setembro de 2020, com o terceiro menor valor do registro histórico (4.300 km3), tivemos 74% a menos de gelo em volume (e, portanto, em massa) do que em 1979, quando começou a ser possível estimar essa variável a partir de satélites.
De janeiro a outubro de 2020, temperaturas em média de até 7°C acima do normal persistiram no norte da Sibéria. Coerente com essa onda de calor, os mares ao norte da região (o de Kara, o da Sibéria Oriental e, principalmente, o mar de Laptev) sofreram degelo antecipado. O efeito se prolongou até estabelecer um novo recorde no atraso do regelo, e o mar de Laptev, normalmente 100% coberto por gelo ao final de outubro, estava bem longe disso em 2020.
Para além da perda de gelo marinho, também é fundamental lembrar as alterações pelas quais tem passado o manto de gelo da Groenlândia, com efeitos que podem ser considerados ainda mais graves, como elevação do nível do mar. Em 2019, esse manto perdeu 532 bilhões de toneladas – o recorde absoluto –, pelo menos desde 1948. Se essa quantidade de água fosse despejada sobre todo o estado do Rio de Janeiro, por exemplo, produziria uma coluna de 12 m de altura.
Em resumo, estamos perdendo uma calota polar a olhos vistos. Tão dramático quanto pouco surpreendente do ponto de vista da paleoclimatologia (ramo da ciência que estuda o clima do passado). A formação da calota polar do hemisfério Norte se deu na chamada transição Plioceno-Pleistoceno (entre 3,2 e 2,5 milhões de anos atrás), intervalo durante o qual a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera da Terra caiu de 375-425 partes por milhão (ppm) para 275-300 ppm.
Embora esse não seja o único fator, não há indícios, pelo menos na Era Cenozoica, da existência de calota polar permanente no hemisfério Norte com mais de 400 ppm de CO2 na atmosfera. Em 2019, a média global anual beirou 410 ppm e, portanto, o ocaso de uma calota polar inteira nos parece um ajuste planetário às novas condições de efeito estufa amplificado pela ferocidade das emissões humanas, principalmente desde o advento dos tempos industriais.
Nas minas de carvão, cruel como possa parecer, quando o canário – ‘espécie sentinela’ – sucumbia, os trabalhadores sabiam que era hora de agir, de se proteger e até de bater em retirada. Enquanto o Ártico, nosso ‘canário climático’, sucumbe debaixo de nossos narizes, só pensamos aparentemente em seguir em frente, inflamando carvão (triste ironia), petróleo e gás e devorando florestas.
‘Seguir em frente’, em alguns casos parece ser literalmente a intenção. É o caso do navio Ob River – que poderia perfeitamente ser rebatizado como ‘Ob Sceno’ –, o primeiro navio-tanque a transportar combustíveis fósseis (mais precisamente gás natural liquefeito), através do Ártico durante o inverno, em 2012. A rota, da Noruega para o Japão, passando ao norte da Rússia, reduz distância e custos desse tipo de operação.
Como corretamente constatou Tony Lauritzen, diretor comercial da empresa proprietária do navio, “há uma tendência de as condições se tornarem mais e mais favoráveis para fazer esse trajeto”; afinal, o gelo marinho do Ártico está cada vez mais escasso e menos espesso, tornando possível, mesmo no inverno, que a rota seja percorrida com o auxílio de um navio quebra-gelo.
Com efeito, os dois relatórios especiais do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) mais recentes trazem perspectivas trágicas sobre o Ártico e sua criosfera. Segundo o SR15 (relatório especial sobre o aquecimento global de 1,5°C), avalia-se que a partir de 1,5°C o Ártico deve ter, pelo menos, um ano livre de gelo marinho no verão a cada século, sendo que a 2°C essa probabilidade aumenta para um ano a cada década.
O Relatório Especial sobre o Oceano e a Criosfera em um Clima sob Mudança (SROCC) mostra que a duração do período de derretimento de gelo marinho está aumentando a uma taxa de 10 dias por década e que o seu declínio será tão mais acelerado e intenso quanto mais elevadas forem as emissões de gases de efeito estufa. De forma trágica, mais combustíveis fósseis transportados através do Ártico favorecem justamente, através de sua queima, o degelo do Ártico e, seguindo o raciocínio do empresário, entraríamos em uma espécie de feedback ou retroalimentação.
O Ob River como exemplo do que poderíamos chamar de ‘retroalimentação dos navios’ é evidentemente um problema, pois a navegação sempre produziu desequilíbrios ambientais em ecossistemas, incluindo introdução de espécies invasoras, poluição química e sonora. Mas é certamente algo bem pequeno se comparado aos inúmeros processos não-lineares associados ao clima do Ártico.
O primeiro desses processos de retroalimentação tem a ver com a alta refletividade do gelo. Quanto mais cobertura de gelo se perde, mais trocamos uma superfície refletora por superfícies mais escuras, especialmente o oceano, que absorve a maior parte da radiação solar que nele incide. Mais energia absorvida no sistema implica mais aquecimento. Quanto mais aquecimento, mais degelo. Quanto mais degelo, mais aquecimento.
Outros fatores se somam ao efeito gelo albedo (poder de reflexão de uma superfície) na chamada ‘amplificação do Ártico’ para designar o processo acelerado de aquecimento regional, que faz com que o aumento de temperatura ali se dê a um ritmo pelo menos três vezes maior do que no resto do planeta nas últimas décadas.
Outra retroalimentação relevante está relacionada ao pergelissolo ou permafrost, camada de solo congelada, em alguns casos, há centenas de milhares de anos, como em Batagay, onde se encontra o permafrost exposto mais antigo que se conhece, com 650 mil anos. Dentro desse imenso ‘congelador’ natural, há uma gigantesca quantidade de matéria orgânica, incluindo restos extremamente bem conservados de animais que viveram há dezenas de milhares de anos, como Yuka, a pequena mamute encontrada na Sibéria. Estima-se que, enquanto a atmosfera terrestre contém no presente algo como 0,85 trilhão de toneladas de carbono (a maior parte na forma de CO2), haja 1,4 trilhão estocado no ‘congelador’ do permafrost.
Acontece que, como toda geladeira, ao ser descongelada, o derretimento do permafrost está expondo a matéria orgânica nele contida à decomposição e, portanto, à produção, cada vez em maior escala, de gases de efeito estufa, incluindo não apenas o CO2, mas sobretudo o metano. Importante lembrar que o aumento de concentração desse gás, por sua menor abundância, produz efeitos bem maiores, traduzidos no chamado ‘potencial de aquecimento global’, que, no caso do metano, é 34 vezes o do CO2, considerando os efeitos no ciclo do carbono na escala de 100 anos. Em suma, menos permafrost, mais gases de efeito estufa na atmosfera e mais aquecimento. Mais aquecimento, menos permafrost.
Há, ainda, o estoque de metano nos chamados ‘clatratos’ no piso oceânico, compostos cuja estabilidade depende das altas pressões e baixas temperaturas, mas embora o disparo da retroalimentação climática a eles associada não pareça estar (ainda) no horizonte, é bom ficarmos atentos e termos cuidado para não despertar o ’gigante adormecido’, termo usado em recente matéria no Guardian.
De todo modo, o clima do planeta, com o Ártico à frente, parece ter entrado em uma máquina do tempo, empurrado cada vez mais pelas emissões humanas. Uma máquina do tempo, aliás, bem mais potente que o DeLorean do Doc Brown em De volta para o futuro e que é influenciada pelo efeito combinado da intervenção humana na atmosfera com as retroalimentações do próprio sistema climático (ou, nesse caso, ‘retrô-alimentações’).
Nosso DeLorean é, na verdade, o impacto conjunto de 1 bilhão de veículos automotivos, usinas termelétricas, indústrias de vários tipos e de uma agropecuária que encurralou os biomas do planeta a menos da metade da área que estes ocupavam originalmente. Isto num tempo muito curto na perspectiva da história geológica da Terra, movido não por um ‘capacitor de fluxo’, mas pela explosão de uma colossal bomba de carbono. E, no nosso caso, é como se o relógio fosse configurado a partir da concentração de gases de efeito estufa.
Como vimos, os 410 ppm de CO2 atmosférico de agora nos atiram pelo menos 3,2 milhões de anos no passado, saltando o Holoceno e o Pleistoceno e levando-nos direto ao Plioceno. Mas o perigo maior é que não paremos aí. Do ponto de vista da concentração de dióxido de carbono, a diferença para o ‘Ótimo climático do Mioceno’, quando os níveis de CO2 variavam de 300 a 500 ppm, 16 milhões de anos atrás, é pequena. E daí, a próxima parada pode muito bem ser em uma ‘Terra estufa’, sem calotas polares em nenhum dos dois hemisférios e praticamente inabitável em amplas áreas. Um mundo cujo clima esteja mais próximo ao do ‘Máximo térmico do Paleoceno-Eoceno’ – quando houve uma brusca mudança climática, há mais de 55 milhões de anos – do que ao do planeta que conhecemos.
E não custa lembrar que não é a minoria de bilionários que, desdenhando do futuro da Terra, sonha com a colonização/terraformação de outros mundos. São as maiorias sociais vulnerabilizadas, as gerações de crianças e jovens do presente e do futuro e, por que não dizer, a biosfera em seu conjunto, irremediavelmente presas ao retorno no tempo marcado no relógio desse DeLorean insano, que, sem sair do lugar, podem estar sendo enviadas para ‘outro planeta’.
Sim, pode ser que estejamos acertando esse relógio climático para um mundo nada parecido com o que a espécie humana tenha visto, para um mundo vários graus mais quente, com oceanos uma ou mais dezenas de metros acima dos níveis atuais e em uma velocidade que não oferece chance de adaptação para um número muito grande de espécies.
Com efeito, lembrando mais uma vez do Doc Brown, “para onde vamos, não precisamos de estradas”, ou, pelo menos, precisaremos de menos estradas e do abandono do uso do petróleo e carvão como fontes de energia. Estima-se que pelo menos 88% dos combustíveis fósseis precisam permanecer intocados se ainda queremos alguma chance de manter o planeta dentro do limite relativamente seguro de 1,5°C de aquecimento.
Algum retrocesso no relógio climático já é inevitável, assim como alguns danos ao ecossistema global já são irreversíveis. Mas ainda há – vejam só – tempo para agirmos e evitarmos os piores impactos do aquecimento global antrópico. E temos a obrigação moral de fazê-lo, agindo com o senso de urgência que a situação nos pede. Afinal, “são seus filhos, Marty! Algo tem que ser feito sobre seus filhos!”.
Alexandre Costa
Centro de Ciências e Tecnologia
Universidade Estadual do Ceará
(Canal e blog: O que você faria se soubesse o que eu sei?)
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maria eduarda
n respondeu minhas duvidas