Muitos historiadores e estudiosos da cultura visual já apontaram que as obras cinematográficas ou televisivas com conteúdos históricos falam muito mais sobre as sociedades que as geraram do que sobre aquelas que retratam em seus roteiros. Com a série Vikings, produção irlandesa e canadense criada e dirigida por Michael Hirst e em cartaz com a quinta temporada no History Channel, não é diferente.
A série não é um registro fiel da história, mas não pretende ser. Inspirada na saga de Ragnar Lothbrok, rei escandinavo que viveu entre os séculos 8 e 9, de seus filhos (Bjorn, Ubbe, Hvitserk, Sigaud e Ivar) e da escudeira Lagartha, a produção mistura diferentes personagens, temporalidades e episódios históricos, descritos pela tradição oral nórdica e consolidados em obras literárias posteriores, para compor uma narrativa ficcional acerca dos vikings e de suas relações com os cristãos, durante a construção do catolicismo como religião hegemônica no mundo europeu.
Na série, os vikings, comandados por Ragnar, se deslocam da península escandinava e empreendem violentos saques a povoados e edifícios religiosos na Grã-Bretanha, sendo o mosteiro de Lindsfarme o que obteve maior protagonismo. Durante a expansão, destacam-se a criação do assentamento de Denelaw, as invasões das cidades de Paris (França) e Essex (Inglaterra), a conversão de Rollo (irmão de Ragnar somente na ficção) ao cristianismo e sua nomeação a duque da Normandia, além das viagens comerciais pelo mar Mediterrâneo, península Ibérica, norte da África, sudeste da França e península Itálica. Muitas dessas expedições foram devotadas a Bjorn Ironside, filho primogênito de Ragnar com Lagartha, sua primeira esposa.
Em relação à política, os episódios que trazem as disputas entre Ragnar e o rei Ecbert de Wessex, a morte de Ragnar Lothbrok por ordens do rei Aelle da Nortumbria e a nova expedição organizada pelos filhos de Ragnar para vingar sua morte são magistrais. Depois de derrotarem militarmente os inimigos externos, protagonizados pelos governantes cristãos Aelle e Egbert, a briga pelo poder se instala entre os filhos de Ragnar, e entre estes e outros reis da península escandinava e do arquipélago dinamarquês, que, sentindo as fragilidades vigentes, passaram a almejar o controle da rica cidade portuária de Kattegat e os bens dos inimigos obtidos com os saques feitos após as vitórias nas batalhas.
A violência é um elemento de grande força na narrativa empreendida e leva o expectador a pensar sobre o impacto da expansão viking no mundo e o papel da brutalidade no processo de construção da civilização cristã. Nos diferentes episódios, também se vislumbram a tecnologia náutica utilizada pelos vikings, com barcos (chamados de drakars) que conseguiam navegar no mar e nos rios, a superioridade das táticas de guerra, a importância das cidades de Ribe, Hedeby e Kattegat como centros comerciais, bem como a riqueza da mitologia e o papel relevante da mulher nas sociedades nórdicas, se comparadas às cristãs.
Mas o que considero mais interessante é a forma com que as interações culturais foram abordadas na narrativa da série. O diretor foge da polarização entre bem e mal, bastante comum em filmes do grande circuito, como os dos super-heróis da Marwel, por exemplo. A essência dos diálogos está no choque de culturas, na percepção das diferenças entre o ‘nós’ e o ‘eles’, o ‘eu’ e o ‘outro’, nas transformações culturais e pessoais sofridas pelos personagens a partir do contato com visões de mundo diversas. As conversas entre Ragnar e o rei Ecbert sobre poder e religião, as cenas entre Lagartha e a princesa Judith (filha do rei Aelle) sobre as limitações femininas na sociedade cristã, a amizade entre Ragnar e o monge Athelstan, que experimenta um processo de conversão ao paganismo e depois reconversão ao cristianismo, são provas de como a série não opta pelo fácil caminho do maniqueísmo e valoriza a alteridade cultural como saída para o entendimento entre os povos.
O contato e as trocas culturais foram tratados como uma via de mão dupla, com efeitos e funções diversos, o que conferiu enorme densidade psicológica aos personagens. Enquanto Athelstan passa por crises existenciais terríveis ao viver entre dois mundos (viking e cristão), Ragnar e Ecbert são curiosos em relação a outras culturas. Como políticos estrategistas, eles sabem a importância de conhecer as crenças e os comportamentos do inimigo para dominá-lo. Contudo, as histórias pessoais demonstram que, no processo de interação e entendimento do ‘outro’, o ‘eu’ também se transforma.
Dessa maneira, Ragnar sofreu ao saber da morte de Athelstan, de quem se tornou amigo e a quem aprendeu a respeitar, mesmo depois que o monge se reconverteu ao cristianismo. Também não foi sem sofrimento que Ecbert orquestrou e assistiu ao calvário de Ragnar. Por diferentes razões, esses homens haviam mudado sua visão de mundo e a forma de enxergar o diferente.
Em contraposição, o roteiro caracteriza os personagens que se fecharam em sua própria concepção de mundo como intolerantes, onipotentes, políticos débeis e cruéis. A quinta temporada da série traz dois importantes destaques com esses temperamentos: Ivar, o sem-ossos, filho de Ragnar que traiu os próprios irmãos para ficar com o trono de Kattegat e instalou uma tirania; e o bispo Headmud, maior adepto do espírito cruzadista cristão da série, ao lado de Aethelwuf, filho de Ecbert.
Portanto, a série de Michel Hirst traz a reflexão sobre o papel da violência na construção da sociedade ocidental, defende valores humanistas e aponta o caos que a falta desses valores traz para as sociedades. Brincando de máquina do tempo, faz uma ponte entre os séculos 8 e 9 e a atualidade. Na segunda década do século 21, com a ascensão de governos de extrema direita, que desqualificam as diferenças culturais, étnicas, religiosas e de gênero, em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil, a série Vikings tem muito a contribuir para um debate necessário. Além disso, é um ótimo entretenimento. Vale muito a pena!
Mariana Muaze
Departamento de História,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio)
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