Inteligência artificial, saúde digital e epidemiologia

Instituto de Saúde Coletiva
Universidade Federal da Bahia

O avanço das tecnologias digitais e da conectividade tem promovido maior alcance e precisão das práticas de cuidado individuais e tem permitido o processamento e a análise de grandes volumes de dados epidemiológicos no campo da saúde coletiva

CRÉDITO: IMAGEM ADOBESTOCK

No Brasil e no mundo inteiro, parece que, neste momento, só existe um assunto em debate: a inteligência artificial (IA), suas virtudes e seus pesares. Em praticamente todos os campos de saberes e em todos os espaços da vida, discute-se o impacto desse conjunto de técnicas de programação que a tecnociência, a indústria, o mercado e a mídia batizaram, em flagrante pleonasmo, de inteligência artificial. Qualquer discussão sobre tecnologias digitais de informação e conectividade (TDIC) termina abordando IA. 

Proponho abordar esse tema no contexto da saúde digital (SD). Esse conjunto de práticas e técnicas em saúde derivadas de codificação binária (daí o termo ‘digital’) foi concebido há menos de uma década, de diversas maneiras e em vários lugares. A representação da SD como formação de ecossistemas digitais de saúde é relativamente recente. Em sua formulação inicial, a concepção ecossistêmica da SD sequer mencionava a IA, ao destacar prontuários eletrônicos, telessaúde, dispositivos digitais, aplicativos e megabases de dados em saúde.

Muitas tecnologias digitais de informação e conectividade viabilizam práticas terapêuticas, curativas, diagnósticas e prognósticas realizadas remotamente, propiciando maior alcance e cobertura

A terceira onda da IA emerge na era pós-pandemia. Falo de terceira onda porque a questão da IA estava presente desde o primeiro momento de invenção da cibernética; depois reaparece em uma segunda etapa, com o desenvolvimento da robótica; e agora ressurge com o furor provocado pelos ‘grandes modelos de linguagem’ (ou LLM, na sigla em inglês). Descontado o modismo, cabe incluir a IA como uma das dimensões estruturantes do campo da SD.

A noção de campo é, nesse caso, uma adaptação tropicalizada da teoria do campo social. O campo da SD se configura na superposição e intersecção de pelo menos cinco grandes campos: a saúde coletiva, a medicina, as ciências básicas da saúde, as ciências sociais e humanas aplicadas e a ciência de dados. Evidentemente, a SD tem como base tecnológica a informática e a computação, disciplinas que têm sido denominadas como ciência de dados – e, em alguns lugares, como ciências da informação. Porém, o que nos interessa diretamente são os âmbitos da saúde individual e da saúde coletiva. Muitas TDIC viabilizam práticas terapêuticas, curativas, diagnósticas e prognósticas realizadas remotamente, propiciando maior alcance e cobertura. Tais práticas metapresenciais de cuidado (que ocorrem ao vivo, por meios tecnológicos) são classificadas como telessaúde – e envolvem telediagnóstico, teleconsulta, teleconsultoria etc. E muitas das TDIC aumentam a acurácia e efetividade das técnicas de cuidado em saúde; por isso, a medicina de precisão tem se apresentado como uma clínica da saúde digital. 

E onde fica a epidemiologia nesse contexto? No Brasil, a epidemiologia se posiciona como o principal eixo disciplinar do campo de saberes e práticas da saúde coletiva. Além da epidemiologia, a saúde coletiva incorpora eixos de ação técnica das políticas públicas do cuidado em saúde (sobretudo nos níveis primários de atenção) e de promoção da saúde (planejamento, gestão, regulação e avaliação), bem como das ciências sociais e humanas em saúde. Assim como todos os campos sociais, a saúde coletiva se constitui como campo de disputas, intra e intersetoriais. Nesse campo, a epidemiologia foi criada e tem se desenvolvido historicamente como a ciência de dados e da informação em saúde, inicialmente para lidar com achados produzidos em amostras. 

A IA, sem dúvida, se apresenta então como ferramenta de escolha para codificação, processamento e análise de dados epidemiológicos em volume massivo e imensa diversidade – os ‘megadados’ (prefiro usar este termo em português, em vez de big data). Entretanto, faço críticas ao que se tem chamado de ‘analítica preditiva’. Em uma megabase de dados, qualquer que seja, será encontrada significância estatística até mesmo para minúsculas diferenças de parâmetros populacionais sem qualquer relevância clínica ou sanitária. Nesse caso, a inferência estatística é falaciosa e a IA é inútil para a interpretação de informação capaz de gerar conhecimento válido e relevante.

Nesse momento, observo uma pressa em produzir soluções, uma certa ideologia da inovação irrefletida, que tomam o lugar da consistência e da rigorosidade. É claro que isso tem a ver com a matriz econômica da transformação digital, em uma busca pela lucratividade em escala, escala muitas vezes não proporcional às formas convencionais do cálculo de custo, lucro e preço e, pior, em detrimento da qualidade e da equidade. Aí se abre toda uma discussão política sobre a possibilidade de que a apropriação acrítica do que se chama de IA crie novos vieses de discriminação, desigualdades e iniquidades em saúde.

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