Evolução bacteriana no Antropoceno

Departamento de Microbiologia e Imunologia
Faculdade de Medicina de Harvard (EUA)

Departamento de Ciência da Literatura
Universidade Federal do Rio de Janeiro

O uso massivo de antibióticos na medicina e na veterinária vem direcionando a evolução e impulsionando a resistência antimicrobiana em bactérias, tornando-se mais uma evidência das alterações provocadas pelas ações humanas no planeta

CRÉDITO: IMAGEM ADOBESTOCK

Embora a ideia de Antropoceno como época de profundas mudanças nos sistemas terrestres devido às ações humanas tenha sido proposta há mais de duas décadas e rapidamente se tornado assunto corrente nas ciências sociais e naturais, pouco foi feito para incluir no debate questões relacionadas à evolução bacteriana. A ideia sugere que mudanças climáticas, redução da biodiversidade, poluição e transformações nos ciclos biogeoquímicos, processos envolvidos de diferentes formas com bactérias, são evidências de alterações nos sistemas terrestres. 

O uso extensivo de antibióticos manufaturados nas práticas clínicas humana e veterinária, somado a sua massiva aplicação nos setores agropecuários, vem, principalmente nas últimas décadas, direcionando a evolução e impulsionando a resistência antimicrobiana (RAM) em bactérias. Essas transformações são evidenciadas nos genomas bacterianos pela incorporação de elementos genéticos móveis (EGMs) contendo genes que codificam fatores de virulência, bacteriocinas (moléculas antimicrobianas) e elementos de resistência a antimicrobianos, além de outros relacionados a vias metabólicas especializadas, permitindo que certas espécies, ou linhagens específicas, degradem novas fontes de nutrientes em diferentes hábitats.

O uso extensivo de antibióticos manufaturados nas práticas clínicas humana e veterinária, somado a sua massiva aplicação nos setores agropecuários, vem, principalmente nas últimas décadas, direcionando a evolução e impulsionando a resistência antimicrobiana em bactérias

Em seus processos adaptativos, seja a comunidades microbianas que constituem humanos e outras espécies animais ou aos diversos nichos disponíveis no meio ambiente, bactérias trocam EGMs para sobreviver. Em ambientes onde a pressão seletiva de antimicrobianos é intensa, será favorecida a seleção de linhagens com resiliência intrínseca constituída há mais tempo e daquelas que se adaptam prontamente à introdução de novos fármacos adquirindo resistências adicionais por meio de EGMs.

Os chamados sistemas CRISPR-Cas, constituídos por repetições curtas, agrupadas e regularmente espaçadas de pequenas porções de DNA nos genomas, podem interferir na disseminação da RAM em bactérias. Observam-se correlações entre a ausência ou inativação desse sistema de defesa e a RAM, enquanto a presença de sistemas CRISPR-Cas intactos é geralmente associada à sensibilidade a antimicrobianos, ou a um espectro mais amplo desses agentes. Essas correlações fazem sentido, pois esse sistema confere aos seus hospedeiros uma memória imunológica, especificamente contra infecções por vírus e plasmídeos (moléculas de DNA bacteriano encontradas fora dos cromossomos e que podem conter genes de resistência a antibióticos). As proteínas Cas reconhecem o material genético invasor na célula e promovem a incorporação de novos espaçadores com segmentos de DNA idênticos ao conteúdo do DNA exógeno. No caso de uma infecção subsequente, esses espaçadores localizam e degradam o DNA invasor.

Essas correlações foram apontadas em pools de genomas mais reduzidos, mas não se sustentam como regra geral em conjuntos mais abrangentes de genomas de uma mesma espécie. As implicações da atuação de CRISPR-Cas contra DNA exógeno para o processo evolutivo e aquisição de RAM em bactérias precisam ser examinadas sob outras perspectivas, como vem acontecendo em pesquisas mais recentes. 

Por exemplo, sistemas CRISPR órfãos de genes cas são encontrados em bactérias, mas não se sabe ao certo se isso ocorre porque esses sistemas não são funcionais ou porque desempenham funções diferentes daquelas associadas à imunidade adquirida ou, ainda, se essa arquitetura seria uma forma de dosar a necessidade de lidar com novas ameaças. São poucos ainda os estudos nessa direção, mas a expressão da proteína Cas se mostra particularmente custosa em algumas espécies, o que parece não acontecer conforme espaçadores adicionais são incorporados à memória imunológica. 

Outro ponto ainda obscuro é que muitas sequências de espaçadores não são reconhecidas, possivelmente por sequências de fagos (vírus capazes de infectar bactérias) não serem facilmente acessíveis em bancos de dados. Mas isso não exclui considerarmos outros alvos para o sistema CRISPR-Cas, além dos fagos e plasmídeos, já comprovados experimentalmente.

As sequências de repetição e espaçamento dos sistemas CRISPR-Cas variam em tamanho e identidade, mesmo em linhagens de uma mesma espécie, podendo também ser idênticas em cepas de diferentes espécies ou gêneros. Entre cepas relacionadas, os conteúdos dos espaçadores próximos à sequência líder são mais diversos, enquanto os conteúdos dos espaçadores da outra extremidade são mais conservados. Variações podem ocorrer ainda em termos de quantidade de sistemas, desprovidos ou não de cas, dentro de uma célula bacteriana. 

Olhar para a formação dessa memória imunológica de uma perspectiva evolutiva e para como isso se reflete na incorporação de EGMs, especialmente em setores com intenso uso de antimicrobianos, é fundamental para reconhecer a importância das transformações do Antropoceno em bactérias e, dessa forma, fomentar um debate sobre possíveis caminhos para tornar as ações humanas no planeta mais conscientes e menos abusivas.

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