A saúde humana é, há séculos, um dos focos mais importantes das atividades científicas. Depois de enfrentar emergências de grande porte e/ou de importância médica, como peste bubônica, gripe espanhola, cólera, varíola e, mais recentemente, as doenças causadas pelos vírus H1N1, Ebola e Zika, a humanidade hoje se depara com a emergência sanitária provocada pelo SARS-CoV-2. Dado o estado de calamidade imposto pela covid-19, a necessidade de direcionamento de esforços científicos para o combate à pandemia, acima de todas as outras doenças, é indiscutível. Entretanto, é preciso apontar a obviedade de que as outras enfermidades continuarão existindo e, consequentemente, subtraindo vidas. Com razão, grande parte da comunidade científica acompanha com preocupação o impacto que a pandemia terá sobre a maneira pela qual as atividades científicas serão conduzidas, publicadas, reportadas e financiadas.
Como apontado por David Adam no prestigioso periódico científico Nature (n. 588, dezembro de 2020), o estado de pandemia estimula ações positivas. Por exemplo, até abril de 2020, a Comissão Europeia já havia investido mais em pesquisas relacionadas à covid-19 do que o montante gasto nas pesquisas sobre Aids, tuberculose e malária durante todo o ano de 2018, o que acelerou a geração de conhecimento e inovação tecnológica, simbolizada mais expressivamente na produção de vacinas. Não há dúvidas sobre a importância dessas ações, mas há temores sobre a expansão e até mesmo sobre a continuidade de programas de investimento em outras áreas.
Até o início de dezembro de 2020, cerca de 1,5 milhão de mortes foram atribuídas ao SARS-CoV-2. Trata-se da mesma dimensão estimada para mortes anuais em decorrência de infecções causadas por patógenos fúngicos, segundo dados do Fundo de Ação Global para Infecções Fúngicas (Gaffi).
Em hipótese alguma se questiona a urgência do combate à pandemia, assim como não se questiona o valor de qualquer vida humana. Portanto, cada centavo investido em pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação para tratamento, diagnóstico e, principalmente, prevenção da doença causada pelo SARS-CoV-2 é necessário, justificável e mais que bem-vindo. Entretanto, ações dessa natureza não eliminam a necessidade de apoio ao estudo de outras doenças, ainda que se reconheça a enorme dificuldade de obtenção de recursos financeiros para apoio à pesquisa.
Por exemplo, o alto número de pacientes vulneráveis a infecções fúngicas e a menor taxa de desenvolvimento de fármacos antifúngicos, em comparação com outras doenças infecciosas, traz grandes preocupações. É igualmente preocupante a constatação de que as ferramentas hoje existentes para o tratamento de doenças fúngicas são insuficientes, conforme evidenciado pela recente descrição, no Brasil, de um patógeno fúngico multirresistente a drogas denominado ‘superfungo’.
Ainda assim, o investimento em pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação na área de doenças fúngicas é muito inferior ao observado para várias doenças de impacto médico similar. Raciocínio idêntico pode ser aplicado a várias outras doenças, especialmente aquelas que afetam populações negligenciadas. Esse grupo, numeroso no Brasil, é vulnerável a um conjunto grande de doenças que também necessitam de geração de conhecimento e inovação, para que sejam adequadamente enfrentadas.
Entretanto, é grave e extremamente preocupante a constatação de que os investimentos públicos em ciência no Brasil estão em queda franca, tendo atingido, em 2020, os patamares de duas décadas atrás. Em um cenário de fortes restrições econômicas, não parece inapropriado antecipar que os investimentos continuarão submetidos a reduções nos próximos anos.
Apresenta-se, portanto, um grande desafio: como balancear de forma adequada os investimentos em ciência, desenvolvimento tecnológico e inovação em saúde humana? A pergunta é de óbvia complexidade e não há resposta simples, especialmente em um cenário de emergência sanitária global e de desafios que se renovam diariamente. Entretanto, seja qual for a resposta mais apropriada, há algo que não pode ser questionado: não será reduzindo investimentos em ciência que avançaremos na nossa capacidade de preservar a saúde humana.
Marcio Lourenço Rodrigues
Instituto Carlos Chagas,
Fundação Oswaldo Cruz (PR)
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