As mulheres por trás da invenção da pílula anticoncepcional

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Uma enfermeira e uma milionária, ativistas pelos direitos femininos, foram fundamentais para o desenvolvimento do fármaco que transformou a nossa sociedade e contribuiu na busca por igualdade de gênero

CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

A pílula anticoncepcional transformou a nossa sociedade e teve um papel fundamental na libertação das mulheres, empoderando-as social, econômica e politicamente. Ao assumir o controle das escolhas reprodutivas e evitando gestações não planejadas, milhões de mulheres no mundo viram suas oportunidades de estudo e carreiras profissionais se modificarem radicalmente, e para melhor! O planejamento familiar aumentou as taxas de formação universitária entre mulheres e sua participação no mercado de trabalho. Essa mudança, consequentemente, contribuiu para a diminuição da pobreza e aumentou a igualdade de gênero em diversas áreas de atividade. 

A primeira pílula anticoncepcional se chamava Enovid e foi aprovada para uso em humanos nos Estados Unidos em 1960. O desenvolvimento e invenção da pílula anticoncepcional é uma história longa e envolve uma série de descobertas científicas importantes que se iniciaram na década de 1930. Embora cientistas do sexo masculino tenham sido instrumentais no desenvolvimento da pílula, ela não teria se tornado uma realidade (pelo menos não tão cedo) sem que a pesquisa tenha sido impulsionada pela visão e pelo ativismo das mulheres. Sem a perseverança de Margaret Sanger (1879-1966) e Katherine McCormick (1875-1967), o desenvolvimento da pílula teria sido atrasado em décadas, e a paisagem da nossa sociedade atual seria completamente diferente. 

Essas duas ativistas foram verdadeiras expoentes na luta pelo direito das mulheres nos EUA, e acabaram se tornando amigas e colaboradoras. Apesar de terem histórias de vida e experiências pessoais muito diferentes, essa insólita amizade se fortaleceu com um propósito comum: oferecer às mulheres a oportunidade de decidir quando ter filhos. Margaret e Katherine se tornaram pioneiras na luta pelo controle da natalidade.

Enfermeira determinada

Margaret nasceu em Nova Iorque, filha de uma família humilde de imigrantes irlandeses. Tinha 10 irmãos e irmãs, e além das 11 gravidezes, sua mãe sofreu 7 abortos espontâneos. Margareth conseguiu concluir o ensino superior e se tornou professora infantil graças a duas irmãs mais velhas que pagaram pela sua educação. Durante seus estudos, ela se interessou pela luta do direito ao voto feminino, o chamado sufrágio universal. Margareth, no entanto, exerceu sua profissão por apenas dois anos, até sua mãe contrair tuberculose e precisar de seus cuidados em tempo integral. Nesse período ela devorava livros de medicina para tentar ajudar com a saúde de sua mãe. E foi assim que ela se interessou pela área de saúde, e, em 1900,  começou a cursar enfermagem. 

Um tipo de experiência deixou marcas profundas em Margaret: durante sua formação em enfermagem, ela era frequentemente chamada para auxiliar os médicos com o parto de bebês cujas mães eram pobres e já tinham numerosos filhos. Muitas dessas mulheres imploravam por informações para evitar futuras gestações. Mais tarde, em sua autobiografia, a enfermeira afirma que se sentia frustrada por não poder ajudar, especialmente as mulheres pobres que ela atendia na área de Lower East Side em Nova Iorque. Para tentar amenizar essa realidade, ela fundou a primeira clínica de controle de natalidade em 1916 (que foi imediatamente fechada pelas autoridades locais) e, mais tarde, a Liga Americana de Controle de Natalidade, precursora da “Planned Parenthood” uma organização sem fins lucrativos que fornece assistência médica reprodutiva e sexual e educação sexual nos EUA e no mundo. Esse trabalho era visto como uma ameaça, e ela sofreu inúmeros processos na Justiça americana.

Milionária corajosa

Katherine nasceu em 1875 em Chicago, no seio de uma família rica e tradicional. Diferente do destino da maioria das mulheres de famílias ricas da sua época, ela foi estimulada pelo pai a buscar uma educação formal e se formou em biologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em 1904. Logo após sua graduação, ela se casou com Stanley McCormick, herdeiro de um império no campo de máquinas agrícolas. Dois anos após o casamento, seu marido adoeceu e foi diagnosticado com esquizofrenia e sua saúde mental rapidamente se deteriorou. Mesmo com essa tragédia, encontrou uma causa e se tornou uma líder na luta pelo direito ao voto. Depois disso, ela passou a se dedicar ao movimento de controle de natalidade, talvez ainda mais controverso para a sociedade da época do que o direito ao voto feminino.

As duas ativistas se conheceram em um evento em 1917. Margareth deu uma palestra sobre saúde da mulher e controle de natalidade, e Katherine ouviu com atenção e curiosidade. As duas se tornaram amigas e se mantinham em contato. Apesar de ser dona de uma vasta fortuna, Katherine não podia usá-la à sua maneira e apoiar abertamente a causa do controle da natalidade, pois seu marido ainda estava vivo e a família dele sempre fez de tudo para tentar controlar o dinheiro.

Mesmo de mãos atadas, Katherine contribuía como podia. Por exemplo, ela fazia viagens anuais à Europa para descansar na casa da família em Genebra e fazer compras nas grandes capitais da moda, Roma e Paris. Mas em vez disso, ela se reunia com executivos de empresas que produziam dispositivos contraceptivos do tipo diafragmas, se passava por uma cientista usando seu conhecimento de biologia e comprava milhares de itens com a desculpa de que seriam usados em pesquisas. Mais tarde ela levava esses carregamentos de volta para os EUA em suas malas de “roupas”. Os agentes da alfândega, que conheciam sua família, jamais fiscalizaram. Katherine permaneceu ao lado de seu marido até 1947, quando ele faleceu. Agora, em poder e controle de sua herança, livre das amarras impostas pela família dele, ela pôde fornecer o financiamento necessário para o movimento de controle de natalidade.

Iniciativa e ciência

Em 1950 Margaret contactou os bioquímicos Gregory Pincus (1903-1967) e Min Chueh Chang (1908-1991), especialistas em bioquímica de hormônios e fertilidade humana, com a ideia de desenvolver uma pílula anticoncepcional. Coincidentemente, a ciência também estava pronta para um desenvolvimento desse tipo. Nas décadas anteriores cientistas como Russel Marker (1902-1995) e Carl Djerassi (1923-2015), dentre outros, aperfeiçoaram a produção de hormônios esteroides sintéticos a partir de plantas. Tudo parecia perfeito para que a pílula anticoncepcional fosse criada, mas havia algo essencial faltando, o financiamento para pesquisa. Nenhuma grande empresa farmacêutica ou órgão do governo aceitava financiar esse tipo de pesquisa. Mas Margaret tinha uma solução, ela entrou em contato com sua amiga Katherine e pediu sua ajuda. 

Katherine doou cerca de US$ 2 milhões em financiamento de pesquisa, algo em torno de US$ 20 milhões nos dias de hoje. Os primeiros testes clínicos da pílula foram realizados entre 1954 e 1955 pelo John Rock (1890-1984), um médico especialista em reprodução e fertilidade humana, e o sucesso foi absoluto. Um ano após a aprovação para o uso em humanos, mais de 1 milhão de mulheres já utilizavam o Enovid só nos EUA. 

A pílula anticoncepcional foi o combustível de uma verdadeira revolução. Mais do que uma inovação médica, é símbolo da liberdade e da igualdade das mulheres. O fármaco remodelou as sociedades ao dar às mulheres o poder de fazer escolhas sobre seus próprios futuros, quebrando barreiras que antes as impediam.

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